sábado, 15 de maio de 2021

De mini-saia e capeline

A minha amiga Luísa gosta muito de me contar histórias e eu de ouvi-las. Contou-me que há tempos, antes da pandemia, viu uma data de carros a passar e, curiosa como só ela, resolveu parar e bisbilhotar. Era um casamento.

Indiscreta, fixou bem o olhar na noiva que saía de um dos carros com a ajuda de um cavalheiro que deduziu ser o pai. Toda pressurosa e nervosa veio uma senhora, talvez a mãe ou madrinha, arranjar-lhe o vestido de cauda, o véu e ajeitar-lhe o ramo. 

Era Agosto. Já se sabe que Agosto não é mês de bons augúrios para um casamento feliz. Mas esta noiva não parecia incomodada. Trajava um vestido de princesa, muito orgulhosa no esplendor de uns vinte e tal anos.



Seguia-os uma legião de fotógrafos. Um deles parecia desempenhar o papel de mestre de cerimónia, pondo e dispondo os convidados nos seus devidos lugares. Não era convidada mas, mesmo assim, ela entrou na Igreja toda engalanada e o noivo à espera que o futuro sogro lhe viesse entregar a noiva.

Luísa registou, quase inconscientemente, o facto de se continuarem a usar trajes tradicionalíssimos -apesar de tanta modernice- sem esquecer o equivalente a grinalda, véu comprido, tudo a preceito, o sonho de todas as noivas. 

Para mais, sabia que, normalmente, a boda ou copo-de-água seguia rituais que dantes não se usavam tanto, precedido de ensaios que tiravam toda a espontaneidade aos convidados. Já para não falar na sessão de fotografias de tirar a paciência a um santo.



Sem transição, lembrou-se de outro casamento, noutro tempo e noutro espaço. A noiva, muito moderna ou a fazer-se de tal, vá-se lá saber porquê sendo ela muito tímida, disse logo à irmã que queria casar de mini-saia e capeline. Tecido comprado há algum tempo, transparente e esvoaçante com uns relevos pequeníssimos, modelo parecido ao da imagem e um pouco mais curto. Sapatos de saltos altos, brancos.

Chegado o dia, levava nas mãos, não o bouquet comme il faut, mas uma rosa de porcelana que o noivo tirara, no último momento, do quintal de uma vizinha. A noiva pegava-a, displicentemente, com ar enfastiado. Teria preferido um ramo mais vistoso e composto mas, nos últimos dias, as floristas tinham encerrado as portas, quem sabe se definitivamente.



Armados em heróis, lá foram os noivos no único carro que circulava por aquelas ruas normalmente movimentadas e agora quase desertas. As poucas pessoas que se viam olhavam desconfiadas para todos os lados e com ar inseguro. 

A Conservatória do Registo Civil, situada na parte alta da cidade, era alvo excelente para as bazucas que assobiavam, a espaços. A cerimónia, no entanto, decorrera sem novidades tendo como testemunhas o irmão do noivo e a mulher - os padrinhos. 

As alianças foram compradas a duras penas, depois de calcorrearem as ruas à procura de uma joalharia aberta. Realmente, depois de muito procurarem e de algumas peripécias conseguiram o aro mágico numa lojinha de vão de escada.
 
A cerimónia não tivera direito a registo fotográfico para a posteridade. Os fotógrafos tinham fugido todos, segundo parecia. Ao longo dos anos, os filhos sempre questionaram a ausência de álbum alusivo ao acto, a atestar a união dos progenitores. Mas o que tem de ser tem muita força, disse a Luísa, encolhendo os ombros.

Tudo rareava, até os bens alimentícios quanto mais ingredientes e disposição para festas e celebrações. Os noivos contentaram-se com um lanche oferecido pela boa vontade e amizade da tia e da prima. Tudo muito surreal, todos com uma máscara de satisfação forçada, sabendo bem o que se passava lá fora e que poderia irromper porta adentro, de um momento para o outro.

Mais surreal ainda, quando os recém-casados saíram de moto para se dirigirem ao apartamento que passaria a ser a sua residência. Tiveram de passar por vários postos de controlo e justificar as vestimentas, além de terem de mostrar os documentos. E cadê o certificado de casamento? 

Perturbados e atabalhoados à vista das armas e caras fechadas dos ferozes controladores, conseguiram encontrar um papel amarrotado que por acaso marcava o dia e a hora do enlace.





Por fim, foram liberados. Durante o percurso a jovem noiva sentia, constantemente, nas costas, calafrios pelos sons de metralhadoras que vinham dos terraços...

E pronto, foi assim o meu casamento. E foi em Maio - concluiu a Luísa com uma gargalhada nervosa.


Cada tempo com as suas histórias, as suas dificuldades, 
os seus dramas, as suas tragédias.
O que vivemos no presente, a nível mundial, já conheceu situações similares no passado. Pestes, epidemias, guerras mundiais e regionais. Tudo se vai ultrapassando, muitos ficam pelo caminho, infelizmente.
E o mundo continua a avançar, a despeito de cada caso
individual ou colectivo.
A história que hoje vos trago é verídica,
contada em modo soft.
Mas, aconteceu num tempo de guerra.
Tempo de confrontos, de lutas
sociais e ideológicas
pelo direito à terra, que fizeram 
muitas vítimas.


"Sete Letras", 
de Simone de Oliveira.
a
(1964-2021)




Abraços, meus amigos.


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Imagens - Net

17 comentários:

  1. Que cerimónias empolgantes, com rituais embrulhados em amor e esperança!
    Estive a pensar que ainda iria aparecer uma noiva de Santo António:)

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  2. rssss, que maravilha, querida Olinda, li sem pestanejar! E pior: imaginei toda a cena, a triste cena! Um conto verídico, e penso... não estamos à beira de coisa parecida? Já estamos todos nos olhando de uma maneira toda atravessada!! Se vamos a um consultório médico, à cabelereira, enfim, onde tiver gente e cada um olha para o outro desse jeito. Mas não é para o outro, é para o vírus.
    E para fechar...a foto de moto está muito engraçada.
    Um bom fim de semana, amiga,
    um beijo!

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  3. Esta palavra saudade!
    Olinda , vou começar pelo fim. Lamentando a partida de uma grande actriz.
    Adoro este fado, e admiro profundamente a Simone de Oliveira.
    Apesar das tragédias, da dores e dos lutos , tudo passa, tudo tem que passar, porque a vida continua !
    Muito feliz esta sua narrativa de duas realidades opostas, com final semelhante.

    Um grande beijinho.




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  4. Boa noite de sábado, querida amiga Olinda!
    A segunda história me encantou.
    Seus ricos, minuciosos, sutis, delicados comentários, deram um toque especial à história, certamente.
    Estive conversando com meu padrinho sobre a Pandemia do século XX que matou milhões...
    Meu pai viveu "de longe" a segunda guerra...
    Creio que o segundo casal foi muito feliz pois ultrapassou desafios...
    Em Maio, mês das noivas, deu sorte ao consórcio.
    O buquê da noiva imaginei daqui...
    Gostei muito de ler suas histórias.
    Como gosto de final feliz, faço votos que ambos tenham vivido a felicidade a dois.
    Tenha um final de semana abençoado e um domingo feliz!
    Beijinhos carinhosos e fraternos

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  5. rsssssssss...Adori a inusitada história e cada um com o seu casamente...Inesquecível, na certa! beijos, tudo de bom,chica

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  6. Gostei das histórias!
    Isabel Sá  
    Brilhos da Moda

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  7. Gostei de ler. Não acredito que Agosto seja mau mês para casar. Eu casei a 16 de Agosto. A Minha irmã a 16 de Maio. Eu tenho tido graças a Deus um casamento que não trocava por todo o ouro do mundo, ela só não se divorciou, porque não conseguia sozinha criar e educar a filha.
    A felicidade das pessoas não tem a ver com o mês em que se casam ou não.
    Quanto ao casamento da Luísa, casar em tempos de guerra é difícil.
    Estou de volta depois de três dias de cama, com febre, dores no corpo todo, vómitos e inchaço nos pés e mãos. E como toda a gente me diz que o pior é a segunda dose, estou bem arranjada. Bom mas o que interessa é que hoje já estou bem.
    Abraço, saúde e bom domingo

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  8. Maria João Abreu, que descanse em Paz

    Quanto aos casamentos, penso que nada mudou, em relação ao entre os dias atuais e o antigamente. Se calhar o que mudou foi vestidos mais caros, ainda que, não mais bonitos. Casar de mini-saia e capeline foi apenas um desejo de... ser diferente.
    .
    Abraço fraterno.
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  9. Cada um tem as suas histórias, umas mais banais e comuns, outras realmente incríveis e inesquecíveis, como o casamento da sua amiga Luísa. Adorei a leitura.
    Fica a Saudade daqueles que partem. Que a Maria João descanse em paz.
    Beijinhos

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  10. Gostei da história. Gostei da homenagem a Maria João Abreu implícita na canção cantada pela Simone. Um post magnífico, minha Amiga Olinda.
    Cuide-se bem.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  11. Excelente post minha Amiga!
    Registo com carinho e um grande Bem Haja, a simples mas maravilhosa homenagem que presta à M. João Abreu, pela voz da Simone!

    Um abraço!

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  12. Todos choramos Maria João Abreu. Tinha uma aura especial. Uma empatia genuína. Era uma excelente atriz. Simone de Oliveira desfolhou-nos um dia com garra e rebeldia. E este conto está um "must". Inserese--se num período em que as emoções ardiam. Entra em estado de perplexidade e sai de moto entre o receio e a liberdade.
    Nas fotos e nas palavras registo um casamento perfeito.

    Beijos, querida amiga Olinda.

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  13. duas distintas formas de celebrar o casamento e "olhar" as instituiçóes - duas distintas "visões" da vida, do casamento e da sociedade!

    não há volta dar! "escrevemos" o Mundo e o Mundo diz o "que somos"

    gostei muito do texto, Olinda
    e do humor finíssimo que diz, a sorrir, coisas sérias

    beijo


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  14. Mesmo em tempos de guerra, o amor comanda a vida e é ele que nos deixa sempre emocionados, perante a perda.
    Abraço amigo.
    Juvenal Nunes

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  15. Celebrações diferenciadas de Amor e Esperança.
    O modo e a forma, da primeira parte do Relato, não reflecte qualquer grau de Amor espiritual; antes a exibição do estado social diante duma mole também ela faminta de notação. A segunda parte, um aligeirado modo do viver actual talvez mais próxima do Amor verdadeiro, mas que não espelha a responsabilidade que o Acto reclama.
    Entendo cada um dos acontecimento e só desejo que ambos realizem a verdadeira felicidade.
    .......
    Também me associo á Homenagem á Maria João Abreu, uma grande Senhora. "Esta palavra saudade..."

    Beijo
    SOL da Esteva

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  16. Gistei de ler sua historia. Ha algumas palavras que não sei bem seu significado mas comprendí tudo em geral e gostei da sua narrativa, muito àgil e bem contada. As imagens falam por si mesmas.
    Parabems por ista interesante escrita.
    Votos de bo fim de semana

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  17. Boa tarde Olinda,
    Duas histórias de casamento diferentes mas ambas muito bem narradas e com algum sentido humor, pelo menos na minha perspetiva, que li de um fôlego.
    Parabéns pelo seu talento narrativo.
    Uma homenagem a Maria João Abreu, como só Simone sabe fazer.
    Paz à sua alma.
    Beijinhos e bom fim de semana.
    Ailime

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