domingo, 31 de março de 2019

Os vários nascimentos de José Craveirinha

José João Craveirinha, considerado o poeta maior de Moçambique, teve o cuidado de escrever numa autobiografia o modo como se via e o que o mundo circundante lhe transmitia, moldando a sua personalidade.

É um texto que nos conduz pelos caminhos da História. A mãe o pai representam dois mundos e, consequentemente, culturas diferentes, idiomas incluídos. A mestiçagem nos seus vários aspectos está patente, sendo a assimilação ou aculturação um dos  seus pontos fortes.

José Craveirinha refere-nos como um dos nascimentos mais importantes o momento em que começa a escrever em O Brado Africano, onde encontra dois poetas que comungam dos mesmos ideais, Rui de Noronha e Noémia de Sousa.

Rui de Noronha, num poema intitulado "Surge e ambula",  exorta a mãe África:

Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E tu dormes no outro sono o sono do teu infindo…

A selva faz de ti sinistro eremitério,
onde sozinha, à noite, a fera anda rugindo…
Lança-te o Tempo ao rosto estranho vitupério
E tu, ao Tempo alheia, ó África, dormindo…
(...)


Noémia de Sousa, a "mãe dos poetas moçambicanos", diz-nos isto em Aforismo:

Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:

Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.

Voltando à autobiografia, José Craveirinha frisa, em dada altura:

E a partir de cada nascimento, eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.(...)Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse País(...)

Um País que ele começa a visionar e que ele próprio considera nos seus poemas uma nação que ainda não existe.

Vim de qualquer parte 
de uma nação que ainda não existe 
vim e estou aqui 
[...] 
Tenho no coração
gritos que não são meus somente 
porque venho de um país que ainda não existe.*

Estavam lançadas as sementes para a construção da moçambicanidade.


====
* aqui
Autobiografia aqui

15 comentários:

  1. Mais um poeta que está na minha lista de leituras a fazer! Na verdade, o tempo não me chega para ler todos os autores de que gostaria. Obrigada por esta partilha, por causa dela talvez vá ler mais depressa o poeta.
    Já agora saliento que idolatrei "aforismo". A última estrofe então nem se fala.
    Bom domingo!

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  2. Boa tarde de serenidade, querida amiga Olinda!
    Permita-me chorar por tanta veracidade nos poemas escolhidos...
    Um ser humano como uma formiga sujeito a ser pisado e esmagado sem dó nem piedade.
    Como ser feliz com tanta calamidade pública e ao recor do mundo, amiga?
    Fica difícil demais!
    A poeta tem magistralidade para incutir a dor na poesia que cria, tem empatia, na certa, só pode!
    Que postagens lindas leio aqui, sempre culta e inteligente, prima pelo bom gosto e nos enriquece demis, amiga.
    Muito obrigada pela postagem.
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem

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  3. Adorei :))

    Bjos
    Votos de um óptima noite.

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  4. Viveu para ver nascer a tal nação que não existia...
    Dias melhores venham para o país encantar com a sua moçambicanidade.
    Uma ótima semana, Olinda.
    Beijinhos
    ~~~~

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  5. Querida Olinda,
    Considero que um poema é sempre um nascimento. É algo que diz de nós e das circunstâncias que o atiçam. Todos temos um pouco de África e, neste sofrimento que avassala Moçambique, temos muito mais.
    Aqui está uma riquíssima publicação. Os questionamentos e os renascimentos a cada verso. E a vida é tão breve para conseguirmos entendê-la.
    Amei. Excelentes poetas.

    Beijos.

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  6. E José Craveirinha escreveu: "Tenho no coração
    gritos que não são meus somente
    porque venho de um país que ainda não existe". Como se estivesse a falar do presente. Como se os seus "nascimentos" dependessem do diálogo com outros poetas… Magnífico!
    Uma boa semana, minha Amiga Olinda.
    Um beijo.

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  7. os poetas, os escritores, os artistas constroem as Nações
    e também as grandes tragédias, por muito que doam (ou talvez por isso mesmo)

    gostei muito, Olinda
    sensibilidade e inteligência neste espaço. sempre!

    abraço

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  8. José Craveirinha e Noémia de Sousa conheço, já li algumas coisa. Rui de Noronha foi a primeira vez que li.
    Moçambique é um belo país, mas não é um bom país. Pelo menos não o era quando lá vivi no tempo colonial. A natureza, é madrasta má para o país, que em anos seguidos se vê vitima de grandes secas para noutros as chuvas alagarem tudo apodrecendo as semente na terra. Lembro bem de 1971, e do enjoo de arroz e batata doce que apanhei pois a seca vinha estendendo-se há três anos e a comida escasseava.
    Agora o ciclone, que não será infelizmente o último porque as alterações climáticas assim o determinam, foi uma tragédia maior porque rápida não deu como enfrentá-lo. Mas Moçambique sempre foi um país de extremos, pese embora toda a sua beleza, e a afabilidade do seu povo.
    Abraço

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  9. Não os conhecia. Aliás, confesso, o quase nada da nova gesta moçambicana; um pouco menos, talvez, da angolana. Mesmo que tenha as terras inapagáveis, na memória. Gostei.
    Abraço.
    jorge

    www.tintapermanente.pt

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  10. Um post brilhante, não conhecia os poetas, obrigado pela partilha.
    Bom fim de semana
    Beijinhos
    Maria
    Divagar Sobre Tudo um Pouco

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  11. Um grande poeta.
    José Craveirinha já nos deixou há uns 15 anos, mas deixou-nos uma obra notável. Foi galardoado com o Prémio Camões nos anos 90.
    Magnífico post, uma homenagem merecida a um escritor meio esquecido.
    Olinda, um bom fim de semana.
    Beijo.

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  12. ...Mas Moçambique existe desde outrora
    E conquistou o tempo que sobrou.
    É bem mais triste vê-la nesta hora
    Sofrendo as dores do mal que o assaltou.


    Beijo
    SOL

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  13. Querida Olinda
    Moçambique tem grandes valores no campo das letras (talvez o mais conhecido seja Mia Couto) e estes que nos apresenta não desmerecem em qualidade.
    São muito bons!
    Os tempos que agora lá se vivem são lastimáveis. Eu vivi lá três anos, nasceu-me lá uma filha e, apesar das atribulações por que passei... adorei lá estar.
    Oxalá não demorem muito tempo a recuperar-se da desgraça que os atingiu.

    Desejo bom Fim-de-semana
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  14. Grande poeta e uma homenagem muito adequada.
    Poeta, alma de um povo.
    Beijinho grande.

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  15. Viva Moçambique!
    Vivam os romancistas e poetas moçambicanos!
    Bela homenagem, minha amiga.
    Beijo.

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