terça-feira, 4 de abril de 2017

Habitantes das margens

Ao passar de manhã vejo-as, alvas, pernaltas, tranquilas, no esplendor da água azul que daqui descortino. Reúnem-se nos rectângulos ou quadrados das salinas. Numa outra, estão as mais pequenas, não pernaltas, também branquinhas. De vez em quando estas levantam voo rasante e enfiam os bicos na água talvez caçando algo de interesse para o seu sustento. É o que eu vejo do lado direito da ponte. Arrisco um olhar apressado ao lado esquerdo, apenas o permitido pelo andamento do transporte, não me detenho nele. 


Concentro-me então deste lado. Agora vejo pontos negros além e mais encorpados à medida que os meus olhos se ajustam tentando fitá-los de mais perto. Noto que o rio se afastou das margens. Para onde terá ido? À vista dos bancos de areia penso, talvez erradamente, que poderia atravessá-lo a pé. Mas, afinal, aquilo que eu vejo são pessoas num labor incessante, enterradas quase meio corpo no lodo. Dali retiram algo, manejam uma coisa qualquer, não o sei o quê. Descubro uma figura de mulher, dobrada pela cintura. Noto-lhe um casaco vermelho e um avental. Mais ao longe há dois ou três barquinhos. Vislumbro junto a eles figuras com água pela cintura.


Compreendo que não há tempo a perder. Assim, a labuta. Não tarda nada o rio volta para o seu leito. Num acto de cumplicidade e solidariedade ele concede às frágeis e difusas criaturas tempo para retirar do seu lodo enriquecido aquilo de que precisam. Nem sempre esse tempo é suficiente. Embebidas naquele trabalho que se me afigura sofredor mas fundamental para a sua subsistência, esquecem-se muitas vezes que a água tem de seguir o seu curso. E por lá se deixam ficar, correndo sérios riscos.


Quando à tarde volto, o rio já é de novo rei e senhor do seu espaço. A maré-cheia está implantada. O sítio escuro e lodoso transforma-se numa bela extensão de água e na sua superfície espelha-se o céu. As pernaltas e as outras estão pousadas nas salinas. Tudo tão calmo. Tranquilo. Uma coisa linda.

Dias virão em que essa ordem será alterada, quando as máquinas esventrarem o solo, umas, e outras torpedearem os ares, espantando a vida que se renova todos os dias no estuário. Ou não?


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1ª imagem: daqui
2ª imagem: daqui
3ª imagem: daqui

10 comentários:

  1. A observação da natureza sempre nos deixa fascinados. Aqui no Barreiro mal a maré começa a vazar, os homens descem para o rio e aventuram-se muitas vezes com água até à cintura. Para que quando o lodo fique à mostra, eles já lá estejam, a fim de que não percam nem um minuto.
    As máquinas? Guerra? Esperemos que não.
    Um abraço

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  2. Um texto, uma observação e uma constatação, que teve a possibilidade de ver ao vivo e de perto. E para além de ser boa observadora, escreve, descreve, mto bem os seus sentires e pensa no dos outros, os seus problemas e nas suas inevitabilidades.

    As pernaltas são mto graciosas, mas pouca ou nenhuma "graça" tem ver pessoas enterradas até à cintura, "metendo-se" com o mar, para a sua labuta, que lhes dará o pão. Conheço pouco ou nada mesmo desta realidade, daí, acho acertado, ficar por aqui.

    Na Natureza nada é estático, igual, mas a mão humana, raramente, sabe atuar, condignamente.

    Beijos e boa semana, querida Olinda!

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  3. Um tremendo e belo texto descritivo onde a visualização é constante levando-nos numa espécie de sonho. Mas é interrompido pela brutalidade das máquinas
    em contraponto com a delicadeza e graciosidade das aves!
    Beijo, Olinda!

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  4. Gosto tanto de observar aves.
    Conheço tão bem essa ponte.
    Beijinhos
    Maria

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  5. Esta dissertação sobre o nosso amado Tejo
    está muito interessante...
    As pessoas habituam-se a ver todos os dias
    e não o apreciam devidamente.
    Dias felizes, Olinda.
    Beijinhos.
    ~~~~

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  6. Pois haverá, mas espero que esses dias demorem!
    Beijinhos, boa quarta :)

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  7. Tantos são os azuis
    nos dois lados das pontes
    Bj

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  8. Querida Olinda
    Que lindo texto!
    Com a tua enorme sensibilidades dás, a quem não o conhece, uma foto viva e pormenorizada do nosso lindo Tejo, da sua fauna e ainda da fonte de subsistência que o seu leito representa para muitas famílias.
    O nosso rio é lindo em toda a sua extensão.
    Esperemos que não o maltratem... e, se for inevitável a vinda das máquinas, que o respeitem como ele merece.

    Re: Reconheceste-me e muito bem :))) E a janela que está aberta (na casa...) era o meu quarto de dormir. Como em Moçambique o sol nasce do mar (Oceano Índico), logo que nascia inundava-me o quarto.
    Quanta saudade!!!

    Minha querida, para a eventualidade de não nos "vermos" antes da Páscoa... aproveito e deixo aqui expressos os meus votos de que a passes com muita Alegria e Amor. Tudo de bom para ti e os teus.

    Bom Fim-de-semana
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  9. Há poesia no teu belo texto! Sente-se a tua procura e a vivência que dela extrais. Muito bom! O Tejo é um mundo de surpresas. É só saber olhar.


    Beijo
    SOL

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  10. No final da manhã, na minha esplanada preferida (Flor de Sal), junto ao rio, li as tuas últimas postagens. Esta fez-me sorrir, pelo rio...
    Parabéns pelo excelente texto; de pendor descritivo, não deixas de fazer uma reflexão sobre a importância do rio para estas gentes e de deixar umas tonalidades poéticas.
    Bjo, amiga

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