Disse para comigo: Eu devo-lhe isto. E isto era precisamente pegar no livro e começar a lê-lo, mesmo que o não começasse do princípio... E sorrio perante esta minha lembrança. O meu pai começava a ler pelo fim. Indagado sobre o motivo, ele dizia rindo: 'Eu cá me entendo'. Abro-o na página 40:
Sentávamo-nos a uma mesinha do café, lá fora, estava-se no Inverno, ela cantava Un bel dì vedremo levarsi un fil di fumo, e saíam-lhe da boca nuvenzinhas de hálito condensado. Eu dizia que eram os ideogramas musicais de Puccini. Chamava-se Atsuko, e o nosso amigo escrevia haiku e poemetos que nos lia quando lhe apetecia. Recordo-me de um que dizia assim:
A folha cai
no vento de Outubro
ondeando ligeira.
Pesado é o tempo de um Verão
passado longe.
Sentados nesse café sonhávamos com mundos possíveis bebendo sumos de toranja. De manhã, nas aulas da Sorbonne, um velho professor de filosofia, cujo nome ignorávamos na nossa abissal ignorância, discorria com lógica acrobática sobre Remords et Nostalgie. Não sabíamos o que isso era, mas aquilo fascinava-nos como mundos longínquos que se imaginam para lá do oceano da vida, numa costa remota que nunca alcançaríamos.
Paro um pouco e fecho o livro. A seguir folheio-o e os meus olhos pousam na página 108, neste parágrafo que passa para a página 109:
Meu amor, perdoa-me se continuo a tratar-te como então te tratava, passados estes anos todos, mas não sei realmente como te hei-de tratar. Como há-de uma pessoa dirigir-se à mulher amada que nos disse ciao até amanhã e que abandonámos sem deixar sequer umas linhas de explicação? Porque o amor de toda a minha vida foste tu, e também a mulher da minha vida, porque as poucas mulheres que tive foram encontros furtivos para satisfação da carne, ao passo que todas as noites, enquanto tentava adormecer, abraçando o ar a meu lado na minha cama solitária, dizia-te meu amor, e o facto de pensar que te tinha nos meus braços sempre me pareceu um grande privilégio. Lembro-me da primeira noite de fuga, em Nápoles, numa pequena pensão que foi o meu primeiro abrigo, eu cantava baixinho no escuro Voce 'e notte, como se cantando no escuro aquela canção a minha voz pudesse alcançar-te para te desejar que encontrasses um marido honesto, um homem que gostasse de ti e que à noite te pudesse abraçar e que no seu abraço tu pudesses esquecer o mal que eu te fizera, e que fosse uma pessoa boa, e sem culpa, um inocente, e não fosse vítima de ninguém, porque entretanto, ao sentir-me vítima, eu deixava de ser inocente, e tornara-me contigo no último dos culpados, e no mais vil.
Neste passo já estou conquistada. De forma mais organizada inicio a leitura e vejo que são cartas. Eu gosto de cartas e estas prometem levar-nos numa viagem aliciante. O ofertante passa por mim, despenteia-me num gesto traquino, balança-me a cadeira e ri alto, dizendo: 'Hahaha, até que enfim. Estava a ver que nunca mais o lias!'
Neste passo já estou conquistada. De forma mais organizada inicio a leitura e vejo que são cartas. Eu gosto de cartas e estas prometem levar-nos numa viagem aliciante. O ofertante passa por mim, despenteia-me num gesto traquino, balança-me a cadeira e ri alto, dizendo: 'Hahaha, até que enfim. Estava a ver que nunca mais o lias!'
Nota: Está a fazer-se cada vez mais tarde - António Tabucchi
Tenho o livro mas ainda não o li. E agora fiquei com vontade de o ler. Pelo que li aqui, pelo que pesquisei.
ResponderEliminarBeijinho
Muito interessante, este tipo de leitura. Fui lá na "fonte" indicada. Cada carta-conto, identifica-se com personagens já conhecidos, ou escritores, artistas. Fiquei curiosa e desejosa de ler Está a fazer-se cada vez mais tarde.
ResponderEliminarFez-me lembrar de um livro que li "Dias e dias", em que a narradora, apaixonada pelo poeta Gonçalves Dias ( poeta brasileiro), traz os seus poemas para a obra, contextualizando-os, como se tivesse convivido com o poeta. A autora é cearense: Ana Miranda. Há vídeos, no Youtube, em que ela dá entrevista e comenta, sobre "Dias e dias".
Gosto sempre, de vir aqui.Uma excelente postagem.
Beijos, querida amiga Olinda,
da Lúcia
OI OLINDA!
ResponderEliminarLEGAL ESTAS TUAS CONVERSAS CONTIGO MESMA, NOS FAZENDO PARTE DE TEUS MOMENTOS DE INTROSPECÇÃO E DE LEMBRANÇAS.
TENHO VÉRIOS LIVROS PARA LER, TENHO DE ABRI-LOS, POIS SEI QUE DAI SEREI FISGADA.
ABRÇS
http://zilanicelia.blogspot.com.br/
É bom ler livros de citações. Gravadas na memória, elas nos inspiram bons pensamentos. Podem também despertar o interesse em ler mais dos seus autores.
ResponderEliminar~ Sir Winston Churchill
Cumprimentos
Querida amiga
ResponderEliminarQue belo texto.
Palavras que conversam conosco,
e acordam saudades em nós...
Que haja em ti sempre
um sorriso,
para enfeitar de beleza a vida.
Querida amiga
ResponderEliminarAinda uma vez mais,
agradeço a generosidade
sempre presente
de suas palavras...
Que haja em ti sempre
um sorriso,
para enfeitar de beleza a vida.
Tenho que confessar, envergonhada, jamais ter lido um livro dele...e , pela amostra, parece que estou a perder .
ResponderEliminarQuerida Olinda, uma noite mais serena que a minha.
Antes de mais quero dizer-te que, quando pego numa revista começo a lê-la pelo fim. O motivo? Até hoje não sei qual é. Mas...cá me entendo! O amor é muito complexo e ama-se do fundo do coração, mas mesmo assim trai-se. Vá lá saber-se o porquê!!!! Escrever para crianças deve ser difícil, assim como educá-las. Bem...o mais importante é saber tratá-las como seres pensantes e não como seres que não sabem e não entendem nada. Engano nosso...elas sabem muito e temos sempre que ter presente que elas sabem muito bem o que querem e muitas vezes os idiotas somos nós, pensando que sabemos mais que elas. Sabemos, claro, pela idade e experiência que já temos, mas temos que nos colocar no lugar delas e aí é que reside o problema, porque muitas vezes já não conseguimos fazer isso. Um beijinho, Olinda e muito obrigada pela partilha. Um bom fim de semana e até sempre!
ResponderEliminarEmília
Que interessante a sua postagem! Conseguiu trazer estímulo para se conhecer a obra. Eu não consigo olhar o fim ou o meio de um livro, quando o pego. Tenho que iniciar na primeira folha (rss). É certo que, quando se fala de contos, de cartas, ler alternadamente não prejudica o contexto. Mas se se tratar de outro estilo, prefiro acompanhar a sequência que o escritor construiu. Grande beijo!
ResponderEliminarEu também começo a ler um livro pelo fim...Me achava louca, mas agora vejo que não sou a única...
ResponderEliminarNão conhecia o autor, espero encontrar algo dele aqui em terras tupiniquins...
Beijos e mais uma vez obrigada pela sugestão!