Sexta-feira, 24 de abril: E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertamos.
Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
E, velejando nós pela costa, acharam os ditos navios pequenos, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol-posto amainaram também obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.
E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas: e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão. em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrês, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.
Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta. mais que de sobre-pente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata.
Mostram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhe um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhe uma galinha; quase tiveram medo dela: não lhe queiram pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhe ali de comer: pão e peixe cozido, confeites, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e se alguma coisa provaram, logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.
Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus zoxins; e o da cabeleira esforçava-se por a não quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaramse e dormiram.
continua...
Fonte: UOL aqui
Imagem: internet
*Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel - Ano de 1500
Uma narrativa "Bíblica"
ResponderEliminarÉ fascinante. É como se a um filme estivesse assistindo.
Um beijo amiga Olinda.
Abraços.
Boa ideia a de publicar este documento.
ResponderEliminarQuerida Olinda, tem uma oferta no "são": espero que lhe agrade e aceite.
Bons sonhos.
Repare que espetáculo descritivo: "Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto".
ResponderEliminar"As vergonhas", que forma poética de falar sobre a anatomia humana, essas que eram tratadas como algo vergonhoso, se Pero Vaz, soubesse o que homens e mulheres, vestidos, com as "vergonhas cobertas", fazem hoje dos/com nossos países...
A "fidelidade" com que a liberdade era narrada, um estilo de vida comum, em função do nosso clima, e da sociedade primitiva organizada, fora dos padrões europeus, mas que era espantoso para um homem branco, e do ponto de vista histórico, antropológico, e sociológico é importante termos esse documento, esse apontamento sobre a chegada dos portugueses e de como viam o mundo fora de Europa.
Naturalmente não estou desculpabilizando nenhuma atrocidade cometida pelo violento processo de colonização, entretanto, a história se deu assim, foi escrita assim; ou, por outro lado colocando o passado histórico de Brasil e Portugal num tribunal de inquisição e incendiando nossos descendentes, eu gosto mesmo é de saber Histórias - assim com agá maiúsculo - , que nos permite conhecermo-nos, e possibilita que não nos equivoquemos mais, e que assim somos capazes de construirmos outro mundo, sem, no entanto, visitar o passado quantas vezes forem necessárias.
A viagem está linda, minha amiga!
;)
em tempo:
ResponderEliminarolha a festa do encontro: o escambo, bichos, bebidas. E ainda a observação sobre os olhos meio asiáticos, o cabelo de cor e fibra diferente, as preciosidades artísticas que os nativos usavam para se enfeitarem... E lhe digo ainda, poucas pessoas sabem que o vice comandante da esquadra de Cabral, se chamava, Sancho de Tovar, hehe.
;))