Sol de outono com o seu brilho característico, dia bonito. Folhas douradas, esverdeadas e acastanhadas atapetam o chão. Tudo convida a um passeio num parque cheio de árvores, à beira-mar, à beira-rio, ou onde nos sentirmos bem. Apetece oferecer sorrisos, flores, paletas de cor, inebriantes perfumes, castanhas assadas e também uma quinda de mel. E porque não este apontamento do Arroz do Céu, de José Rodrigues Miguéis:
A primeira vez que viu aquele arroz derramado no chão, e sentiu os bagos a estalar-lhe debaixo das botifarras, o limpa-vias não fez caso; varreu-os com o resto do lixo para dentro do saco cilíndrico, com um aro na boca. Mas como ia agora por ali com mais frequência, notou que a coisa se repetia. O arroz limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz? Intrigado, ergueu os olhos pela primeira vez para o Alto, e avistou a vaga luz de masmorra que escorria da parede. Mas o respiradouro, se bem me compreendem, obliquava como uma chaminé, e a grade, ela própria, ficava-lhe invisível do interior. Era dali, com certeza, que caía o arroz, como as moedas, a poeira, a água da chuva e o resto. O limpa-vias encolheu os ombros, sem entender. Desconhecia os ritos e as elegâncias. No casamento dele não tinha havido arroz de qualidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem de galinha.
Até que um dia, depois de olhar em roda, não andasse alguém a espiá-lo, abaixou-se, ajuntou os bagos com a mão, num montículo, e encheu com eles um bolso do macaco. Chegado a casa, a mulher cruzou as mãos de assombro: alvo, carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para dentro de um cartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estação, e levou-o para casa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, à patroa e aos seis ou sete filhos. Ela habituou-se, e às vezes dizia-lhe: «Vê lá se hoje há arroz, acabou-se-nos o que tínhamos em casa.» Confiada naquele remedeio de vida!
O limpa-vias nunca perguntou donde é que chovia tanto grão, sobretudo no bom tempo, pelo Verão, e aos domingos, que até parecia uma colheita regular. Embrulhava-o num jornal ou metia-o num cartucho, e assim o levava à família. Ignorando que lá em cima era a Igreja de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, e como tal de bom-tom, não sabia a que atribuir o fenómeno. Pelo lado da raiz, no subway, os palácios, os casebres e os templos não se distinguem.
E foi assim que aquela chuva benéfica, de arroz polido, carolino, de primeira, acabou por lhe dar a noção concreta de uma Providência. O arroz vinha do Céu, como a chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto, pensava no limpa-vias, tão pobre e calado, e mandava-lhe aquele maná para encher a barriga aos filhos. Sem ele ter pedido nada. Guardou segredo – é mau contar os prodígios com que a graça divina nos favorece. Resignou-se a ser o objecto da vontade misericordiosa do Senhor. E começou a rezar-lhe fervorosamente, à noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher. Arroz do Céu...
O Céu do limpa-vias é a rua que os outros pisam.
Muito Bonito: Lecionávamo-lo aos 7ºs anos, penso...e os alunos reagiam muito bem. Perfeita, esta escolha!
ResponderEliminarBj
BS
Muito obrigada por esta partilha de um texto que não conhecia. Um abraço e uma boa semana
ResponderEliminarEste texto é lindo, comovente e, claro fui ler tudo. Ele leva-nos a reflectir nos excessos da nossa sociedade actual; muito se desperdiça e da abundância da nossa mesa muita coisa é deitada ao lixo sem que pensemos naqueles grãozinhos de arroz que nos sobram e que tanta falta fazem a muitos
ResponderEliminar"O Céu do limpa-vias é a rua que os outros"
pisam."
Andamos sempre com tanta pressa que nem para o chão olhamos; pisamos tudo sem sequer vermos o que ficou debaixo dos nossos pés, mas o que é pior...pisamos também em muitas pessoas que, apesar de humildes são seres humanos como nós. Não há cidadãos de 1ª, de 2ª ou de 3ª; há simplesmente SERES HUMANOS que, infelizmente não são respeitados de igual foram. Muito obrigada, Olinda, pela oportunidade que me deste de conhecer este texto que nos deixa mais um alerta contra o desperdício. Um beijinho e espero que tenhas uma bela semana
Emília
Na simplicidade das coisas se desenham pequenas preciosidades. Que mais dizer, para além de enaltecer a sensibilidade e o talento do escritor?
ResponderEliminarUm obrigado pela partilha.
Beijo :)
Olinda...
ResponderEliminarPosso comentar esta história com um poema?
Com tua permissão, quero lhe falar de um homem chamado Lázaro.
O Lázaro
As migalhas que caíram no esquecimento,
Que das ruas foram sobra e tiradas do latão;
Foram restos, que depois de certo tempo,
Fez-se um rumo, e destino noutra mão...
Mas um louco, talvez gênio, peregrino e agora,
Segue a vida, toda via ao relento e contramão;
A sujeira descartada, de outro mundo para fora,
Para ele é um sustento, é talvez um ganha-pão!
Na calçada da infâmia, é um astro moribundo,
Pois vazio de amor, de juízo e compaixão;
Não restou alternativa em viver tal vagabundo...
Abandonado feito lixo, é um estorvo e dejeto!
É um Lázaro errante, pois na vil comparação,
É apenas espantalho, que ninguém lhe chega perto...
Então prezada amiga, todo os dias, há algum milagre ocorrendo. Lázaro sobrevive com o maná descartado.
Um fraterno abraço de teu leitor e amigo.
Beijos.
Boa noite Olinda!
ResponderEliminarNão conhecia esse texto e gostei muito.
Beijo e boa semana pra ti.
Com carinho,
Mara
Oi Olinda, não conhecia esse belíssimo texto. Obrigada por compartilhar. Um texto que me faz refletir em tantos desperdiço, e pessoas que nem um grãozinho de arroz tem a mesa.Ótima semana cheia de coisas especiais e muitas energias positivas nos seus dias. Beijos grande!
ResponderEliminarGostei daqui e estou te seguindo.
ResponderEliminarUm abraço
Marineide
(marcia grega)
http://marciagrega.blogspot.com
http://coisasminhas-escritas.blogspot.com
http://gregapoemas.blogspot.com
É um texto belíssimo (fui ler na íntegra, claro!) que eu não conhecia. Foi uma escolha óptima!
ResponderEliminarEntendo que a mensagem que o autor nos quer transmitir é a de que, muitas vezes desperdiçamos bens que consideramos nulos, e que para pessoas necessitadas têm um valor incalculável.
E de tal modo isso é verdade que até alteram os seus hábitos - o limpa vias passou a rezar, coisa que nunca tinha feito, considerando o arroz uma dádiva celestial.
Foi um bom momento de leitura.
Boa semna. Beijinhos
Estamos num momento de muitas necessidades...
ResponderEliminare que bom seria que (a muitos surgisse um
bocaado de arroz do céu). Gostei.Bj./Irene
Que delícia de arroz e de conto! Tenho o "Gente de Terceira Classe", mas ainda não o li.
ResponderEliminarBeijinhos e boa semana!
Madalena
Este limpa-vias, se tivesse "olho-para-o-negócio", passava a limpar somente junto às igrejas e com todo o arroz que juntasse, e o jeito da mulher para o cozinhar, passava a vender comida para fora.
ResponderEliminarQuem sabe, passado pouco tempo, seria ele a fornecer o arrozinho à valenciana para os copos-de-água dos cazamentos!?
Hmmmm...
Isséqueera!
;))))
É sempre assim: "O que os ricos deitam fora, os pobres aproveitam". Belo conto, de um grande escritor.
ResponderEliminarBeijinho amiga
Maria
Lindo conto! É que Deus sabe de nossas necessidades, antes que nós mesmos as saibamos.
ResponderEliminarBjs e boa semana!
O arroz do céu é um conto magnífico.
ResponderEliminarObrigado pela partilha, pois não conhecia.
Beijos, querida amiga.
Olinda, que delícia de texto, e que bom que partilhaste conosco.
ResponderEliminarTodo tempo é tempo de aprendermos sobre generosidade e caridade; tanto quanto dos pequenos (e grandes) milagres que acontecem, mesmo quando nao nos damos conta, e ainda assim, eles estao acontecendo!
E penso que vais gostar das leituras sugeridas, e conhecerás um pouco mais sobre essa gente e esse país chamado Brasil!
Deixo um beijao enorme!!
;)
Meus amigos
ResponderEliminarMuito obrigada pelos vossos comentários e reflexões, os quais vieram completar o meu post. Na verdade, conto sempre convosco,com o vosso saber, com as vossas ideias e a vossa maneira de compreender o mundo.
Feitas as contas, o saldo é a meu favor...:)
Beijinhos
Olinda