domingo, 20 de novembro de 2011

Arroz do Céu

Sol de outono com o seu brilho característico, dia bonito. Folhas douradas, esverdeadas e acastanhadas atapetam o chão. Tudo convida a um passeio num parque cheio de árvores, à beira-mar, à beira-rio, ou onde nos sentirmos bem. Apetece oferecer sorrisos, flores, paletas de cor, inebriantes perfumes, castanhas assadas e também uma quinda de mel. E porque não este apontamento do Arroz do Céu, de José Rodrigues Miguéis:


A primeira vez que viu aquele arroz derramado no chão, e sentiu os bagos a estalar-lhe debaixo das botifarras, o limpa-vias não fez caso; varreu-os com o resto do lixo para dentro do saco cilíndrico, com um aro na boca. Mas como ia agora por ali com mais frequência, notou que a coisa se repetia. O arroz limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz? Intrigado, ergueu os olhos pela primeira vez para o Alto, e avistou a vaga luz de masmorra que escorria da parede. Mas o respiradouro, se bem me compreendem, obliquava como uma chaminé, e a grade, ela própria, ficava-lhe invisível do interior. Era dali, com certeza, que caía o arroz, como as moedas, a poeira, a água da chuva e o resto. O limpa-vias encolheu os ombros, sem entender. Desconhecia os ritos e as elegâncias. No casamento dele não tinha havido arroz de qualidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem de galinha.
Até que um dia, depois de olhar em roda, não andasse alguém a espiá-lo, abaixou-se, ajuntou os bagos com a mão, num montículo, e encheu com eles um bolso do macaco. Chegado a casa, a mulher cruzou as mãos de assombro: alvo, carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para dentro de um cartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estação, e levou-o para casa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, à patroa e aos seis ou sete filhos. Ela habituou-se, e às vezes dizia-lhe: «Vê lá se hoje há arroz, acabou-se-nos o que tínhamos em casa.» Confiada naquele remedeio de vida!
O limpa-vias nunca perguntou donde é que chovia tanto grão, sobretudo no bom tempo, pelo Verão, e aos domingos, que até parecia uma colheita regular. Embrulhava-o num jornal ou metia-o num cartucho, e assim o levava à família. Ignorando que lá em cima era a Igreja de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, e como tal de bom-tom, não sabia a que atribuir o fenómeno. Pelo lado da raiz, no subway, os palácios, os casebres e os templos não se distinguem.
E foi assim que aquela chuva benéfica, de arroz polido, carolino, de primeira, acabou por lhe dar a noção concreta de uma Providência. O arroz vinha do Céu, como a chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto, pensava no limpa-vias, tão pobre e calado, e mandava-lhe aquele maná para encher a barriga aos filhos. Sem ele ter pedido nada. Guardou segredo – é mau contar os prodígios com que a graça divina nos favorece. Resignou-se a ser o objecto da vontade misericordiosa do Senhor. E começou a rezar-lhe fervorosamente, à noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher. Arroz do Céu...
O Céu do limpa-vias é a rua que os outros pisam.


Arroz do Céu
José Rodrigues Miguéis
Excerto retirado de:
AQUI
Texto integral
Imagem Google

17 comentários:

  1. Muito Bonito: Lecionávamo-lo aos 7ºs anos, penso...e os alunos reagiam muito bem. Perfeita, esta escolha!
    Bj
    BS

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  2. Muito obrigada por esta partilha de um texto que não conhecia. Um abraço e uma boa semana

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  3. Este texto é lindo, comovente e, claro fui ler tudo. Ele leva-nos a reflectir nos excessos da nossa sociedade actual; muito se desperdiça e da abundância da nossa mesa muita coisa é deitada ao lixo sem que pensemos naqueles grãozinhos de arroz que nos sobram e que tanta falta fazem a muitos

    "O Céu do limpa-vias é a rua que os outros"
    pisam."

    Andamos sempre com tanta pressa que nem para o chão olhamos; pisamos tudo sem sequer vermos o que ficou debaixo dos nossos pés, mas o que é pior...pisamos também em muitas pessoas que, apesar de humildes são seres humanos como nós. Não há cidadãos de 1ª, de 2ª ou de 3ª; há simplesmente SERES HUMANOS que, infelizmente não são respeitados de igual foram. Muito obrigada, Olinda, pela oportunidade que me deste de conhecer este texto que nos deixa mais um alerta contra o desperdício. Um beijinho e espero que tenhas uma bela semana
    Emília

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  4. Na simplicidade das coisas se desenham pequenas preciosidades. Que mais dizer, para além de enaltecer a sensibilidade e o talento do escritor?
    Um obrigado pela partilha.

    Beijo :)

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  5. Olinda...
    Posso comentar esta história com um poema?
    Com tua permissão, quero lhe falar de um homem chamado Lázaro.


    O Lázaro

    As migalhas que caíram no esquecimento,
    Que das ruas foram sobra e tiradas do latão;
    Foram restos, que depois de certo tempo,
    Fez-se um rumo, e destino noutra mão...

    Mas um louco, talvez gênio, peregrino e agora,
    Segue a vida, toda via ao relento e contramão;
    A sujeira descartada, de outro mundo para fora,
    Para ele é um sustento, é talvez um ganha-pão!

    Na calçada da infâmia, é um astro moribundo,
    Pois vazio de amor, de juízo e compaixão;
    Não restou alternativa em viver tal vagabundo...

    Abandonado feito lixo, é um estorvo e dejeto!
    É um Lázaro errante, pois na vil comparação,
    É apenas espantalho, que ninguém lhe chega perto...

    Então prezada amiga, todo os dias, há algum milagre ocorrendo. Lázaro sobrevive com o maná descartado.
    Um fraterno abraço de teu leitor e amigo.
    Beijos.

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  6. Boa noite Olinda!
    Não conhecia esse texto e gostei muito.
    Beijo e boa semana pra ti.
    Com carinho,
    Mara

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  7. Oi Olinda, não conhecia esse belíssimo texto. Obrigada por compartilhar. Um texto que me faz refletir em tantos desperdiço, e pessoas que nem um grãozinho de arroz tem a mesa.Ótima semana cheia de coisas especiais e muitas energias positivas nos seus dias. Beijos grande!

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  8. Gostei daqui e estou te seguindo.
    Um abraço
    Marineide
    (marcia grega)


    http://marciagrega.blogspot.com
    http://coisasminhas-escritas.blogspot.com
    http://gregapoemas.blogspot.com

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  9. É um texto belíssimo (fui ler na íntegra, claro!) que eu não conhecia. Foi uma escolha óptima!
    Entendo que a mensagem que o autor nos quer transmitir é a de que, muitas vezes desperdiçamos bens que consideramos nulos, e que para pessoas necessitadas têm um valor incalculável.
    E de tal modo isso é verdade que até alteram os seus hábitos - o limpa vias passou a rezar, coisa que nunca tinha feito, considerando o arroz uma dádiva celestial.

    Foi um bom momento de leitura.

    Boa semna. Beijinhos

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  10. Estamos num momento de muitas necessidades...
    e que bom seria que (a muitos surgisse um
    bocaado de arroz do céu). Gostei.Bj./Irene

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  11. Que delícia de arroz e de conto! Tenho o "Gente de Terceira Classe", mas ainda não o li.
    Beijinhos e boa semana!
    Madalena

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  12. Este limpa-vias, se tivesse "olho-para-o-negócio", passava a limpar somente junto às igrejas e com todo o arroz que juntasse, e o jeito da mulher para o cozinhar, passava a vender comida para fora.
    Quem sabe, passado pouco tempo, seria ele a fornecer o arrozinho à valenciana para os copos-de-água dos cazamentos!?
    Hmmmm...
    Isséqueera!
    ;))))

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  13. É sempre assim: "O que os ricos deitam fora, os pobres aproveitam". Belo conto, de um grande escritor.
    Beijinho amiga
    Maria

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  14. Lindo conto! É que Deus sabe de nossas necessidades, antes que nós mesmos as saibamos.

    Bjs e boa semana!

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  15. O arroz do céu é um conto magnífico.
    Obrigado pela partilha, pois não conhecia.
    Beijos, querida amiga.

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  16. Olinda, que delícia de texto, e que bom que partilhaste conosco.
    Todo tempo é tempo de aprendermos sobre generosidade e caridade; tanto quanto dos pequenos (e grandes) milagres que acontecem, mesmo quando nao nos damos conta, e ainda assim, eles estao acontecendo!


    E penso que vais gostar das leituras sugeridas, e conhecerás um pouco mais sobre essa gente e esse país chamado Brasil!

    Deixo um beijao enorme!!

    ;)

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  17. Meus amigos

    Muito obrigada pelos vossos comentários e reflexões, os quais vieram completar o meu post. Na verdade, conto sempre convosco,com o vosso saber, com as vossas ideias e a vossa maneira de compreender o mundo.

    Feitas as contas, o saldo é a meu favor...:)

    Beijinhos

    Olinda

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