Encontrei, por estes dias, o poeta António Nunes (1917-1951) no livro de Germano Almeida que ando a ler, romance histórico intitulado "A Morte do Ouvidor". Tenho acompanhado o narrador e o seu amigo Luís Henriques pelas ruas da Cidade Velha, em busca dos edifícios originais, dos fortes, ou então dos seus vestígios que é o mais certo. Luís Henriques frui de todos os cheiros e ares com enlevo e é nestas suas palavras que se verifica o meu encontro com o referido poeta:
Lembras-te daquele poema de Jorge Barbosa, "quando a chuva passar hei-de ir ao cimo do cutelo para ver o cenário soberbo que a terra tem e sentir o cheiro húmido da terra encharcada"? E sem esperar que respondesse: Pois é assim que me sinto neste momento debaixo deste sol impiedoso e deste calor sufocante - encharcado pelo fedor da terra molhada, embriagado por este enjoativo cheiro de melaço que está no ar vindo de algures, estonteante e quente, como queria o António Nunes e põe aqui em frente de mim a memória de um remoto trapiche aonde o meu pai me levou ainda menino e que, por acaso, estou convencido não ser muito distante daqui onde nos encontramos...
Ribeira Grande (Cidade Velha)
O Pelourinho - símbolo da autoridade e da ministração da Justiça
Por isso, razão suficiente para querer saber mais dele. Detectei-o em alguns sítios, contudo, do que mais gostei foi da competentíssima publicação de Brito-Semedo, no blog Na Esquina do Tempo, onde encontrei o poema que, a seguir, transcrevo.
Assim, apresento-vos o Poeta do quotidiano mas também conhecido como o Poeta visionário:
Mamãi!
sonho que, um dia,
em vez dos campos sem nada,
do êxodo das gentes nos anos de estiagem
deixando terras, deixando enxadas, deixando tudo,
das casas de pedra solta fumegando do alto,
dos meninos espantalhos atirando fundas,
das lágrimas vertidas por aqueles que partem
e dos sonhos, aflorando, quando um barco passa,
dos gritos e maldições, dos ódios e vinganças,
dos braços musculados que se quedam inertes,
dos que estendem as mãos,
dos que olham sem esperança o dia que há-de vir
– Mamãi!
sonho que, um dia,
estas leiras de terra que se estendem,
quer sejam Mato Engenho, Dacabalaio ou Santana,
filhas do nosso esforço, frutos do nosso suor,
serão nossas.
E, então,
o barulho das máquinas cortando,
águas correndo por levadas enormes,
plantas a apontar,
trapiches pilando
cheiro de melaço estonteando, quente,
revigorando os sonhos e remoçando as ânsias
novas seivas brotarão da terra dura e seca,
vivificando os sonhos, vivificando as ânsias, vivificando a Vida!...
O poema estrutura-se em duas partes, segundo os momentos temporais. Do passado, que se prolonga até ao presente, e do futuro, por antecipação, com recurso a uma prolepse. Os dois momentos são introduzidos pelo vocativo “Mamãi”, assim mesmo, na língua materna, numa identificação com as suas origens. Mais aqui
Forte Real de São Filipe - Fortificação portentosa que não impediu
o pirata francês Cassard
de saquear Ribeira Grande (hoje Cidade Velha) a seu bel-prazer
De "A morte do Ouvidor" falarei um pouco mais adiante. Uma narrativa intrincada, com diálogos inseridos no corpo do texto - sem indicação visível de que são diálogos - que aos poucos vão entranhando no leitor a vontade de caminhar ao lado do narrador e do co-narrador, percorrendo os caminhos da História de Cabo Verde, Sec. XVIII, num tema que se centra no Coronel Bezerra de Oliveira e sua época. Surpreendente, em alguns aspectos, quando nos deparamos, por exemplo, com a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, a menina dos olhos do Marquês de Pombal, com todos os direitos sobre o comércio e supervisão política e social no arquipélago e, mais ainda, no comércio da costa da Guiné.
====
Germano de Almeida - A Morte do Ouvidor - Excerto pg 77
...a menina dos olhos do Marquês de Pombal... pg 89
Imagens: Net