quinta-feira, 19 de abril de 2018

"trinta e seis meses"

Françoise d'Aubigné,* Madame de Maintenon, esposa morganática de Luís XIV, teve uma infância não muito feliz, pobre mesmo, com o pai na prisão onde ela própria teria nascido, vivendo de favor em casa de uns tios e, inclusivamente, num convento. Num desses períodos, entretanto, o pai saiu da prisão e aventureiro como ele era resolve emigrar para Guadalupe com a família, em 1644, sem posses, tendo a mulher que recorrer a um prestamista para poderem ter lugar no navio (ela, os pais e dois irmãos). O excerto que se segue é uma das passagens da narrativa sobre a viagem:




  
Os passageiros livres como nós, não eram, todavia, os que mais sofriam instalados à maruja na entrecoberta, dormíamos em cima de esteiras,(...); tínhamos toda a liberdade de subir à coberta e de andar por onde quiséssemos, desde que isso não perturbasse a manobra.
Não era o caso dos pobres contratados, que naquele navio eram cerca de duzentos: operários ou camponeses sem crédito, que a miséria em França obrigava a ir procurar o pão na colónia, não podiam custear a passagem e comprometiam-se, antes de partir, a servir sem remuneração três anos um passador que lhes pagava o preço da viagem. Por causa do tempo que estes desgraçados alienavam voluntariamente a sua liberdade e se faziam escravos, chamavam-lhes "trinta e seis meses": estes desgraçados viajavam encerrados nos porões, sem ar, sem roupas suficientes, sem água doce para se manterem decentemente limpos; infestados de piolhos, deitados a monte entre o lodo e os detritos, pegavam uns aos outros as mais variadas doenças cujo cheiro e infecção subiam até à entrecoberta. Estas incomodidades eram tais que morreram de febres, durante a viagem, mais de cinquenta destes infelizes, ou seja, quase um por dia, cujos corpos os marinheiros lançavam ao mar depois de terem disparado o canhão.

Desse passado, do longínquo Século XVII, vêm-nos estes ecos migratórios, de pessoas que, para fugirem à miséria, empenham a sua própria liberdade ainda que por tempo determinado ("trinta e seis meses") nada garantindo, contudo, que ficariam livres depois de pagarem o que deviam. Situações similares verificam-se no presente, de gente enganada com promessas de trabalho fora dos seus países de origem, espoliada dos seus documentos até pagarem o empréstimo. Mas essa liberdade poderá nunca ser reconquistada, continuando esses engajadores a controlar toda a sua vida.

Ainda hoje ouvi e li que neste nosso Portugal o tráfico de seres humanos está fora de controlo. Um crime silenciado - disse a pessoa entrevistada, nas notícias das 13h, da Sic.

Outra triste sensação que este texto me traz é a forma como aquelas pessoas são empilhadas nos barcos, sem piedade. Esse facto lembra-me os barcos de negreiros cuja carga iria abastecer as plantações das colónias detidas pelo chamado mundo ocidental. Uma migração forçada em que a exploração do homem pelo homem conheceu momentos arrepiantes.


Mas, continuamos impávidos e serenos sem nada aprender, ou quase nada, com a História. 


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.Ver um interessante artigo intitulado: Escravos, no Andanças Medievais, de Cristina Torrão.


.O excerto acima é da obra:

A Alameda do Rei, de Françoise Chandernagor - pg 35

*Leia também este excerto, um retrato, uma espécie de resumo, já no final deste livro cuja autora percorre a vida de Françoise d'Aubigné através das suas cartas e outros documentos da época - página 460

Toda a minha vida tive frio. Há crianças que os pais votam à Virgem ou a qualquer outro santo no dia do nascimento; a mim votaram-me ao frio num dia de Novembro numa cela sem lareira da prisão de Niort, e esse patrono nunca mais me deixou. Seguiu-me até Mursay, naquele pequeno quarto que nunca aqueciam para não me habituarem a confortos acima da minha condição; juntou-se-me em La Rochelle, naquele Outono chuvoso em que eu andava descalça pelas ruas para conseguir um pouco de pão; envolveu-me numa tarde de Inverno enquanto confiavam à terra o caixão do meu irmão; seduziu-me em Paris quando, calçando sapatos furados, me esforçava por manter-me entre os grandes sem escorregar; desposou-me em Versalhes enquanto o vento se engolfava pelas janelas do meu quarto abertas de par em par. (...)
  

7 comentários:

  1. Também me chocou muito essa terrivel noticia de que em Portugal o tráfico de seres humanos está fora de controle; se é dificil aceitarmos que em tempos idos os escravos eram tratados como animais ou pior, muito mais nos custa aceitar que nos tempos modernos ainha haja esse tipo de tratamento. Mas não saberão esses " desalmados " que o tratamento digno aos trabalhadores resultará numa maior produção? Pessoas felizes trabalham mais e melhor e todos lucrariam com isso. Mas não há quem fiscalize, não há quem se importe com esses seres humanos que só querem um trabalho que lhes proporcione uma vida digna. O que importa é que o dinheiro entre nos bolsos dessa gente sem escru. Outra noticia que me arrepiou foi a da " máfia do pinhal de Leiria "; aquele terrivel incêndio foi minuciosamente preparado por um grupo de poderosos da industria da madeira e, claro, não temos dúvidas de que todos os outros aconteceram do mesmo modo; não adianta nada limpar as matas se não colocarem esses irracionais na cadeia. Olinda. Gostei muito de conhecer a história dos " 36 meses" ; desconhecia por completo. Afinal tudo continua, independentemente do número de meses. Uma vergonha, querida amiga! Desejo-te um bom fim de semana agora que a primavera já nos brinda com algum sol e calorzinho. Obrigada pelas informações preciosas que aqui nos deixas. Um beijinho
    Emilia

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  2. O homem é useiro e vezeiro em repetir os erros do passado. Vestem-lhe uma nova roupagem e pronto.
    Abraço e bom fim-de-semana

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  3. Bem se sabe que a ideia de progresso e a emancipação de humanidade não seguem uma linha recta, que existem avanços e recuos e penosos retrocessos.

    nada está adquirido.

    julgo, por isso, que não devemos alienar o sentido crítico (como aqui acontece) e sermos permanentemente vigilantes face ao retrocesso dos valores civilizacionais.

    gostei muito ler, Olinda
    abraço

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  4. A notícia não é chocante.
    O que choca é o conhecimento aceite e continuado destas e outras injustiças e humilhações de Seres Humanos e nem interessa o local de nascimento.
    Deplorável que o tempo actual em muito se assemelhe á Idade Média.



    Beijo
    SOL

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  5. Aprendi muitos pormenores que desconhecia. E, sim, nunca devemos alienar o sentido crítico.
    Beijinho

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  6. Uma página de dor, miséria e desumanidade. E fora de controlo continua o tráfico de seres humanos. O que significa que, para alguns, a vida é cativeiro. Há que denunciar! Muito bem, Olinda!

    Beijinho.

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  7. Choca e inquieta saber que há ainda seres humanos escravizados. Não sabia a história dos "trinta e seis meses". Nos dias de hoje até custa a creditar que ainda aconteça. Como dizia a Sophia na sua Cantata da Paz: Vemos, ouvimos e lemos, mão podemos ignorar...
    Uma boa semana, Olinda minha Amiga.
    Um beijo.

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