segunda-feira, 5 de março de 2018

Passagem

Será uma breve passagem entre a cinza e o vento.
Uma suave tentativa, um ligeiro sopro
às portas do silêncio. Uma perda
de tudo, do próprio sentido e do desejo.
Ser nada mas habitar o instante e os seus murmúrios
na infinita dispersão. Entre ruínas,
nos confins de uma terra acinzentada
em que as nuvens e as árvores se confundem,
tudo tem sabor a destino e a princípio,
a plenitude ou nada. E a palavra vibra
silenciosa, unânime, quase ébria
de um deus vegetal entre cigarras.
O mar cintila já. O exílio quase cessa.
O que é breve perdura em grávida leveza.

António Ramos Rosa
   (1924-2013)

in: Facilidade do Ar
pg.8





(...)
O que mais nos toca nesta belíssima poesia não ocorre, assim, ao nível de qualquer pendor confessional, mas sim graças à sua ideia de atingir um conhecimento ignorante: condenado à imanência (e à iminência) de uma fala que detém o poder de nomear, mas que se sabe efêmera, o poeta procura ligar o "deserto" ao "oásis", difundindo  a sua subjectividade por cada ínfima partilha do real, já que o sentido do mundo se encontra em todos os lugares e em lugar nenhum. (...)

Fernando Pinto do Amaral

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Imagem: Desenho de António Ramos Rosa - aqui

8 comentários:

  1. "[...] a plenitude ou nada[...]" é o todo duma passagem.
    A vida vive-se assim.
    Poema divinal, profundo, perfeito...
    Parabéns pela escolha.


    Beijo
    SOL

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  2. Gosto da poesia do António Ramos Rosa. E este poema não foge à regra.
    Parabéns pela escolha.
    Boa semana, amiga Olinda.
    Beijo.

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  3. António Ramos Rosa, um dos grandes de Portugal!

    Convidamos a ler o capítulo III do nosso conto escrito a várias mãos "Voar Sem Asas"

    https://contospartilhados.blogspot.pt/2018/03/voar-sem-asas-capitulo-iii.html

    Saudações literárias

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  4. "E a palavra vibra
    silenciosa, unânime, quase ébria
    de um deus vegetal entre cigarras."
    É assim a palavra de António Ramos Rosa. Os seus poemas são para reler sempre. Gostei de o ler aqui, Olinda.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  5. https://poemasdaminhalma.blogspot.pt/
    Olá Olinda Melo, passei e adorei, a "Breve passagem entre a cinza e o vento". Um belíssimo poema recheado de simbolismo e sentimento às portas do silêncio. Gostei muito!
    Beijo e boa semana.
    Luisa Fernandes

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  6. que melhor destino para o poeta que ser "ligeiro sopro/às portas do silêncio"? quem nos dera tão "grávida leveza"!...

    gostei muito também do desenho.

    deixo um abraço, Olinda

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  7. " Ser nada mas habitar o instante..."

    Perdermo-nos e encontrarmo-nos a cada murmúrio...

    Grata por tão ditosa partilha, querida Olinda.

    Beijinho.

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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