segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Fintar a morte

Era a guerra. Nas minhas costas sentia o crepitar das balas e a moto, puxada ao máximo, galgava por onde desse. Eu era a protecção de quem ia a conduzir e não podia ser doutro modo. Para a frente é que era o caminho em direcção ao downtown, onde morava uma prima minha. A filha mais nova, a Margarida, de 3 anos, saltou de alegria quando nos viu, cantando e dançando. E com tanta pouca sorte que caiu e bateu com a boca no fio da mesinha da sala. Muito sangue. Não havia meio de fazê-lo parar. Tivemos de decidir depressa e ir à procura de um hospital onde pudesse ser atendida. Com a tensão existente, tivemos de passar por vários postos de controlo. O importante é que ela ficou bem. Desses dias de susto compostos de vários episódios aflitivos, é o que mais me emociona ainda hoje. A lembrança das filas de racionamento, da pouca água, do perigo constante, serve-me para dar importância a umas coisas e não a outras, relativizando-as.


Assim, acredito que toda a história tem vários lados e a própria História, como disciplina, sendo uma construção humana, é passível de várias interpretações. Ocorre-me perguntar, de que são feitos os heróis? Respondo: Penso que são feitos, muitas vezes, de momentos fortuitos. E, sim, precisamos deles e dos nossos mitos e lendas como do pão para a boca. Os rituais associados a essa representação são elementos fundamentais para que nos sintamos unidos como povo. São eles que nos guiam e, em momentos de crise, é bom que os tenhamos bem presentes. Lembro-me de ter lido, no tempo em que tinha de fazer essas leituras, que na mitologia romana os  mortos tinham a designação de Manes, espíritos dos entes queridos com a função de proteger a família, uma espécie de deuses do lar, já para não falar de culturas no nosso mundo contemporâneo que têm um relacionamento similar com a morte.

Camões, em "Os Lusíadas", universaliza para sempre a melhor maneira de fintar a morte, pondo a tónica em: (...) E aqueles que por obras valerosas/ Se vão da lei da morte libertando;/ Cantando espalharei por toda a parte/ Se a tanto me ajudar o engenho e arte.



É isso. Tenhamos elevação de espírito. Honremos os nossos mortos, celebrando a vida. As nossas conquistas de todos os dias, pequenas ou grandes, não interessa o tamanho. O fundamental é sentir que estamos a construir algo de útil para nós e para os outros, com a mente aberta. Ficarmos enredados em tricas, intrigas e quejandos é uma forma depressiva de nos diminuirmos como povo. Cantemos e dancemos em honra dos nossos heróis, espalhando por toda a parte a notícia do legado de que somos herdeiros.

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Imagem 1 - daqui
Imagem 2

   

3 comentários:

  1. Lembro-me de ter terminado um poema, já com dois ou mais anos com uma pergunta retórica, do género "onde andam os nossos heróis"... Precisamos do seu exemplo...
    Excelente partilha, relevando o último parágrafo.
    Bjinho

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  2. Creio que entendi a tua mensagem, querida Olinda. O papa Francisco diz com toda a razão que damos mais importância à morte que à vida e vê- se isso mesmo nos funerais, onde as pessoa vão carregadas de flores e muitas vezes nenhuma visita fizeram à pessoa quando viva. Falta-se ao emprego para ir a um funeral, mas nunca se arranja tempo para visitar o amigo doente. Esta história do Panteão, já começa a ser ridicula, pois há tanto problema sério no nosso pais e anda-se entretidos com coisas menotes. Por que não começam a trabalhar na resolução do problema que as cinzas causarão com as chuvas? Como bem lembraste, amiga, há muito a fazer nesse aspecto e não vemos ninguém preocupado com isso, Que importa o jantar no Panteão? Será que os nossos heróis ficaram ofendidos? Decerteza que não. Olinda, obrigada pelas reflexões que nos levas a fazer com estes posts e vamos lá...celebremos a vida e respeitemos as pessoas enquanto nela estiverem; depois basta guardá-las no coração. Beijinhos
    Emilia

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