domingo, 7 de maio de 2017

Poema cansado de certos momentos





Foi-se tudo 
como areia fina escoada pelos dedos. 
Mãe! aqui me tens, 
metade de mim, 
sem saber que metade me pertence. 
Aqui me tens, 
de gestos saqueados, 
onde resta a saudade de ti 
e do teu mundo de medos. 
Meus braços, vê-os, estão gastos 
de pedir luz 
e de roubar distâncias. 
Meus braços 
cruzados 
em cruz de calvário dos meus degredos. 
Ai que isto de correr pela vida, 
dissipando a riqueza que me deste, 
de levar em cada beijo 
a pureza que pariste e embalaste, 
ai, mãe, só um louco ou um Messias 
estendendo a face de justo 


para os homens cuspirem o fel das veias, 
só um louco, ou um poeta ou um Cristo 
poderá beijar as rosas que os espinhos sangram 
e, embora rasgado, beber o perfume 
e continuar cantando. 
Mãe! tu nunca previste 
as geadas e os bichos 
roendo os campos adubados 
e o vizinho largando a fúria dos rebanhos 
pela flor menina dos meus prados. 
E assim, geraste-me despido 
como as ervas, 
e não olhaste os pegos nem as cobras, 
verdes, viscosas, espreitando dos nichos. 
De mão nua, entregaste-me ao destino. 
Os anjos ficaram lá em cima, cobardes, ansiosos. 
E sem elmos ou gibões, 
nem lutei nem vivi: 
fiquei quieto, absorto, em lágrimas 
— e lá ao fundo esperavam-me valados 
e chacais rancorosos. 




Mãe! aqui me tens, 
restos de mim. 
Guarda-me contigo agora, 
que és tu a minha justiça e o exílio 
do perdido e do achado. 
Guarda-me contigo agora 
e adormece-me as feridas 
com as guitarras do fado.

Mas caberá no teu regaço 
o fantasma do perdido? 

in "Mar de Sargaços" 


(1919-1989)


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Em 9/05/2017


Meus amigos:

Já me encontro em solo pátrio, sã e salva. :) 
Muito obrigada pelas vossas visitas.

Tenham uma óptima semana.

Abraço

Olinda

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Poema e imagens: Internet 

11 comentários:

  1. Um poema doloroso, realista e franco,
    de uma qualidade literária notável.
    Nem para todos este dia é feliz, a
    maioria vive-o entre a nostalgia e
    o carinho dos presentes.
    Grande abraço, Amiga.
    ~~~~~~~~~

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  2. É um poema lindo. De Namora só conheço a prosa.
    Obrigada pela partilha
    Um abraço

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  3. "O bom filho a casa torna" - uma síntese do poema, sendo a casa a significância da semântica de mãe, o ser de acolhimento, por natureza e excelência.
    Belíssima partilha, Olinda.
    (De volta e bem. Que bom!)
    Bjinho

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  4. Meu Deus, que poema mais lindo!
    Desconhecia a veia poética de Fernando Namora. Obrigada, Olinda, por me abrires os olhos.
    Que nunca te canses de partilhar coisas lindas.
    Beijo.

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  5. Senti cada palavra deste poema de Fernando Namora como se fosse meu... Maravilhoso!
    Uma boa semana, Olinda.
    Um beijo.

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  6. "Foi-se tudo", que frase tão contundente!

    Há dias em que tudo se esvai, como se a vida não passasse de um punhado de grão de areia.

    Beijo, amiga Olinda.

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  7. Querida Olinda
    Fernando Namora, sempre! Para mim... um dos melhores.
    Este poema é espectacular, bem diferente dos habituais poemas dirigidos às mães.
    Obrigada pela muito feliz escolha e partilha.

    Fico contente por te encontrares em "solo pátrio" e, acima de tudo, "sã e salva" :)

    Votos de uma semana muito feliz.
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  8. E, como diz a nossa amiga, Majo, nem sempre o dia dedicado às mães é de alegria; passei-o já em " solo pátrio " com a casa cheia, mas o coração partido; tinha acabdo de deixar um mãe abalada e um pai já bastante ausente da realidade e uma melancolia tem-me acompanhado desde que cheguei. Mas as opções foram feitas e não há como voltae atrás; a vida segue, feito " trem bala" e não devemos desperdiçar um minuto sequer com lamentos; as tristezas são inevitáveis e portanto também devemos permitir que nos acompanhem neste trem. Olinda, adorei este poema que desconhecia e agradeço-te imenso a partilha. Deixo-te um beijinho muito especial e o meu muito obrigada por te teres lembrado de mim neste tempo de ausência. Até sempre, querida amiga.
    Emilia

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  9. Uma excelente escolha, gosto imenso de ler Fernando Namora, em prosa e em poesia.
    Beijinhos
    Maria

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  10. Um data que deveria trazer alegria mas nem sempre é assim.
    Há tantas lacunas nessa relação mãe x filho
    Filhos que já perderam suas mães, mães que puderam ficar com seus filhos, filhos órfãos de mães viva. O poeta delineou com maestria essa relação
    Uma belíssima escolha e uma partilha incrível Olinda
    Beijos

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  11. Tudo é miseravelmente pouco quando a palavra é MÃE.
    E como que finalizando esta comemoração, quero agradecer , querida Olinda, as suas palavras, elo que nos une quânticamente.
    Beijinho! :) **

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