terça-feira, 22 de novembro de 2016

uma mãe com ar de casa



uma mãe com ar de casa, um edifício de habitação que lentamente se vai arruinando e tão depressa se transformará em escombros; o que nos conforta é a perfeita consciência de que haverá sempre uma beleza fértil, um legado, uma paisagem afectiva que se produz, nos pormenores, nos pequenos gestos, a atenção que ela nos foi prestando durante anos, a singularidade sentimental da herança que se preocupou em construir, a magia edificante que sempre brotará das suas mãos, da sua alma, dessa coisa que em si produzia amor, o brilho que emana da sua arquitectura emocional; e não há palavras capazes de explicar, tudo em si é representativo daquilo que nos dá, que nos deu, do que ela é, do que ela foi, do que sempre será; e pensamos muito no que aconteceria se de repente um infortúnio qualquer no-la roubasse, sabendo que à medida que vamos crescendo isso virá a acontecer; e porque ela nos faz muita falta, e toda a gente a quer muito, ninguém sabe, ninguém está nunca preparado, ninguém consegue sequer imaginar a sua ausência, como se ela fosse uma espécie de campo magnético, um valor central, um incêndio, as coisas mais antigas de que nos lembramos têm todas a sua marca, ela está lá sempre, o seu sorriso, os seus olhos, a sua luz, e não nos sai da cabeça a hipótese da sua extinção, o simples reconhecimento de que ela findará, de que ela terminará - tudo terminará, quando menos se espera já se acabou

Miguel Godinho*

Algarve - 12 Poetas a Sul do Século XXI - foi aqui que o encontrei. Referência a uma antologia que representa aquilo que alguns dos mais importantes poetas do Algarve (naturais ou adoptados) fizeram nos últimos anos. 
Perguntei-lhe se podia trazer este seu texto comigo. Não me disse nada. Partindo do princípio de que quem cala consente, eis-me a partilhá-lo convosco, aqui no Xaile. Desculpe-me o atrevimento, Miguel Godinho ou Miguelangelo Godinho*.

Meus amigos, já estou bem. Obrigada pela vossa amizade. A partir de 30 de Novembro vou passar uns dias noutras paragens, mais a Sul.

Abraço

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Imagem: Pixabay

6 comentários:

  1. Gostei muito do texto do Miguel Godinho...
    Uma prosa poética tão sentida e sensível!
    Parabéns ao autor e a si, pela postagem,
    com uma ilustração também muito bela.
    ~~~ Beijinhos, estimada Olinda ~~~

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  2. Sou muito sensível a este género de narrativa: da memória, do legada, da presença, da pertença... Os tempos, os lugares, os rostos. E isto é vida, e isto é gente!
    Parabéns ao autor. Grande partilha!
    Bjo, Olinda e tudo de bom. :)

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  3. E que bom que já estás completamente restablecida e, melhor ainda que rumarás a sul onde, talvez o sol brilhe e aqueça mais um pouco os teus diad. Este texto, amiga, é tocante! Sou mãe e tenho ainda a minha; apesar de longe, não há um dia em que não a recorde e não imagino a minha vida sem ela, sem a saber no outro lado do Atlântico, na casinha onde sempre viveu; simples, mas onde não faltam os vasinhos de orquideas na parede da varanda, a hortinha ao fundo do pequeno quintal e a cachorrinha que lhe obedece, parecendo entender até os gestos; sei-a lá, feliz por ainda estar bem, apesar da idade, triste muitas vezes por ver o seu companheiro de tantos anos num mundinho só dele; não estou lá onde, sei, gostaria que eu estivesse, mas ela sabe que estou aqui e eu sei que eles estão lá. Na aldeia onde nasci e onde sempre vivi, permanece a casa, não em ruinas, porque não deixo, mas vazia de gente; quando vou lá, revejo-a, apressada, de um lado para o outro, cuidadando para que em casa nada faltasse; alimentava os coelhos, matava um frango, levava as ovelhas ao quintal, e o porquinho esperava também a sua vez que chegava sempre. Era necessário todo esse trabalho, pois as condições financeiras não eram muitas e os estufos dos filhos tinham que ser pagos; não havia excessos, mas havia o suficiente e carinho, atenção, diálogo n6nca faltaram. Olho para aquela casa recordo com saudade os tempos vividos lá e agradeço os pais que tudo fizeram para que a mim e ao meu irmão não faltassem nem a formação e muito menos o pão. Olinda, agradeço-te muito a partilha deste lindo texto que me deu a oportunidade de , mais uma vez, recordar tempos felizes da minha vida. Beijinhos
    Emilia

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  4. Excelente escolha, um texto de grande sensibilidade.
    Beijinhos
    Maria

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  5. A nossa casa é também onde estão aqueles que são a nossa segunda pele :)
    Beijinhos e bom repouso!

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