sábado, 20 de agosto de 2016

Sento-me então a olhar o rio




Sento-me então a olhar o rio, 
os meus pensamentos formam cardumes 
que contra a corrente se insurgem 
mas as águas são inexoráveis; 
olhando-as, a superfície cintila, 
propaga-se como se fossem notas 
de um piano na garupa de um cavalo 
que se dirige para o mar. 
O rio bebe as cores da cidade, 
sobre elas eu abro o coração 
em que te encontras, as colinas 
emolduram as raízes que à terra
nos ligam. Para os meus olhos 
é um momento de pausa: as coisas 
que interrogo não resistem à maré,
não dão respostas; perdem-se no mar 
como tudo o que a memória não reteve.




Mas este rio 
já foi longamente folheado, nele 
escrevemos o romance de amor 
que nos deu uma casa, 
nos cortou o cabelo, nos afastou 
das rugas, nos entregou o azul 
(tecido, nuvem, divã, janela...) 
o voo das artérias, lugar do corpo, 
portas que nos amanhecem, espelho 
onde fazemos fluir a vida. Acordes 
da guitarra que forja o horizonte, 
que guia o sinuoso voo das gaivotas 
e acaricia a pele que rasga atalhos 
no interior dos sonhos. Estarei 
vivo enquanto me guardar 
teu coração. E no seu lucilar, 
esta água imita o fogo 
que devora sombras e escombros, 
libertando a asa que no sangue 
respira. A foz está próxima, 
mas o horizonte é o teu olhar. 
No leitor do carro, a guitarra flexível 
sublinha o que divago; os acordes 
disparam, 
encontram-me na trajectória do seu alvo. 

Egito Gonçalves
        1920-2001



Mais uma vez, sento-me a olhar o rio nas asas de palavras que voam por sobre a cidade, qualquer cidade, e desaguam na foz, qualquer que seja. Ao fim e ao cabo a foz está próxima mas o horizonte é o teu olhar. Tudo perto e tudo tão longe. Somente o pensamento atravessa fronteiras e desfaz amarras.

Mas, o corpo que é terreno não se dissocia completamente do que o rodeia. Durante a noite oiço a tosse que não pára. Já a oiço também durante o dia. Afino os ouvidos e pergunto-me: Donde virá? Há alguém que sofre aqui perto. Mas em que prédio? Qual a porta? Cá por casa indago. Talvez seja alguém que mora sozinho e precise de ajuda. Como resposta invade-me a preocupação. E resolvo. Vou bater de porta em porta. 


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Poema: In: A Ferida Amável

Imagem: Pixabay

23 comentários:

  1. Respostas
    1. Fernanda, é mesmo você, Menina?
      Estive algum tempo sem notícias suas.
      Depois fui ao seu blog e encontrei umas
      coisas que não percebi.
      Gostaria que me confirmasse o endereço
      do "aleatoriamente".

      Beijinhos

      Olinda

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  2. Excelente, Olinda.
    Não conhecia o autor...
    Uma escolha muito interessante.
    Gostei muito.
    Beijinho.
    ~~~~

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    1. Muito obrigada, Majo.
      Cá a espero para, juntas, fazermos mais leituras como esta.
      Bj

      Olinda

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  3. Um olhar de recordação, um olhar introspectivo.
    Bela poesia que nos faz pensar.

    🌿✿゚╮Bom fim de semana!
    ✿⊰ه° ·.Beijinhos.🌾 ه° ·.

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    1. Sim. Um olhar introspectivo que se projecta para fora.

      Bj

      Olinda

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  4. Bate de porta em porta, minha amiga...talvez possas ver a minha angústia.
    Belíssimo poema de um poeta que adoro, mas que vai sendo esquecido.
    Beijinho

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  5. E assin o nosso Egito Gonçalves
    permanece vivo
    Boa partilha
    Bj

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    1. "E aqueles que por obras valerosas /Se vão da lei da Morte libertando,"

      Abraço

      Olinda

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  6. Querida Olinda, que bonito poema e que bonita a decisão! Bonita e infelizmente improvável...
    Beijinhos
    (Não estive de férias, pelo contrário!)

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    1. Tem razão, minha amiga.
      Felizmente já obtive a resposta, sem chegar a esses extremos. :)

      Muito trabalhinho então, hein?

      Bj

      Olinda

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  7. E mais uma vez partilha um belo poema. Obrigado por isso.
    Um abraço

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    1. Muito bom ter aqui vindo ler este poeta.
      Obrigada.
      Bj
      Olinda

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  8. Quando aqui passo aprendo sempre algo, mais um autor que não conhecia (eu sempre calhei mais para a prosa). Obrigada por mais uma maravilhosa partilha!
    Beijinhos!

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    1. Olá, Catarina H.

      Na verdade,temos um mundo imenso de grandes poetas.
      Obrigada pela sua presença aqui no Xaile.

      Bjs
      Olinda

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  9. Não podemos simplesmente ficar a olhar o rio; de vez em quando faz-nos bem essa pausa para reflectir, para recordar, para tentar respostas a perguntas que nos inquietam; mas junto ao rio há uma cidade que vive e nela pessoas que nem sempre podem olhar o rio, nem sempre sabem que esse rio existe; há dores nelas, há pressas em busca de pão, há inquietudes que só elas entendem; temos que tentar o nosso melhor para que esse rio seja para todos, nem que precisemos de " bater em porta em porta"para descobrir de onde vem aquele sofrimento por nós sentido; poderemos pelo menos abrir a janela de par em par e carinhosamente mostrar o lindo rio que por perto corre. Adorei, Olinda e não conhecia nada deste poeta. Obrigada, amiga. Um beijinho
    Emilia

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    1. Grandes verdades o teu comentário nos transmite. Se cada um de nós se mantiver virado para si próprio, sem olhar em redor, o mundo torna-se cada vez mais opressivo e egoísta.

      Obrigada

      Beijinhos

      Olinda

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  10. Eu, inicialmente, pensei que o final do post pertencia também a uma obra ficcionada, mas agora entendi que a Olinda estava mesmo a referir-se a uma situação concreta! Espero que tudo esteja melhor!
    Beijinhos

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    1. Obrigada, M.
      Realmente é uma situação concreta.
      Penso que as coisas estão a melhorar.
      Beijinhos
      Olinda

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  11. As águas são uma metáfora irresistível, querida Olinda. Fiquei curiosa em relação a esse tossir... encontrou a quem pertence?
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Sim, Ruthia, encontrei.
      Obrigada pelo seu interesse.
      Beijinhos
      Olinda

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  12. Involuntariamente, estou dentro deste poema, apenas não conseguiria expressar, em poesia, de forma tão bela e profunda, o que este estado de "estar sentado a olhar o rio" provoca. Excelente partilha.
    Relevo, de forma assaz positiva, o texto que escreveste. Parabéns!
    BJO, Olinda

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