segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Mãe-água: O rio limparia a terra, cariciando suas feridas





Se cumprimentaram rodando as mãos sobre os polegares, à maneira da terra. Os dois velhos amigos se sentam, fiando conversa, recordando os tempos.

-Sabe, Muidinga? Nós dois éramos empregados do mesmo patrão.

Cada um puxa a sua lembrança, em suave escorrer, rindo mesmo dos mais tristes momentos. O miúdo lhes chama ao presente. Quer saber o que animava Nhamataca, covando assim.

-Estou a fazer um rio, responde o outro.

Riem-se, o rapaz e Tuahir. Mas o homem insiste, no sério. Sim, por aquele leito fundo haveria de cursar um rio, fluviando até ao infinito mar. As águas haveriam de nutrir as muitas sedes, confeitar peixes e terras. Por ali viajariam esperanças, incumpridos sonhos. E seria o parto da terra, do lugar onde os homens guardariam, de novo, suas vidas.

Estava tão seguro que começara por escavar no chão da própria casa. Ruíram as paredes, desabou-se o teto. Os seus se retiraram em dúvida da sua sanidade. Idos os próximos, irados os distantes. O sujeito desafiava os deuses que aprontaram os mundos para os viventes dele se servirem, sem ousarem mudar a obra. Mas Nhamataca não desistiu, covando no dia a noite. Foi seguindo, serpenteando entre vales e colinas, suas mãos deitando e renovando mil vezes as sangradas e calejadas peles. E agora, sentado na ribanceira, guarda com vaidade a sua construção. Aponta o fundo:

-Vejam, já se esponta um fioziozito de água.

Tal aguinha nem se via. Havia, quando muito, um suor na areia do fundo. Mas os visitantes não contrariam.

-E que nome ele vai ter?

Nome que dera ao rio: Mãe-água. Porque o rio tinha vocação para se tornar doce, arrastada criatura. Nunca subiria em fúrias, nunca se deixaria apagar no chão. Suas águas serviriam de fronteira para a guerra. Homem ou barco carregando arma iriam ao fundo, sem regresso. A morte ficaria confinada ao outro lado. O rio limparia a terra, cariciando suas feridas.

Mia Couto, Terra Sonâmbula, pgs 139,140


Em tempo:

Terra sonâmbula. Escrita saborosa. Linguagem mítica que fala da guerra mas também dos costumes e do relacionamento entre as pessoas. E dos laços que se reinventam a cada instante. Assim Kindzu, o menino com carências afectivas e o comerciante indiano, Surendra, longe das suas raízes e discriminado no meio, que lhe diz: Você é como o filho que Assma nunca me deu. E procuram algo em comum que possa explicar esse laço, o gosto de falarem de tudo e de nada. O Índico: é isso, não havendo uma pátria à  qual chamar sua, são cidadãos do Índico, eis o elo.

Com muito gosto, partilho convosco estes momentos de agradável leitura.

Voltarei com um ou outro excerto.

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Actualização, com imagens e notas, em 25/11/2014.

1ª imagem: aqui

15 comentários:

  1. (•ิ‿•ิ)✿

    Merci pour ce partage chère Olinda !!!!

    Bonne journée

    GROSSES BISES d'ASIE vers toi

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  2. Mais do que no conteúdo, confesso que reparei na forma e nas variantes do português :)
    Beijinhos, boa semana!

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  3. Como seria bom se fazer um rio dessa espécie trilhada na narrativa de Mia Couto: Ah como seria bom!
    absorver e ou tragar palavras como essas é de muito como um rio caudaloso.
    Abraço

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  4. Mia Couto...Espectacular....
    Cumprimentos

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  5. Seria maravilhoso um rio dessa forma, que levasse toda a violência da terra.
    Esse livro Terra Sonâmbula deve ser muito bom, fiquei curiosa a respeito.
    Deixo um beijo Olinda!
    Ótima semana!

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  6. Muito obrigado pela partilha, para ser um excelente livro.
    Beijinhos
    Maria

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  7. O que nos faz amigos é essa capacidade de sermos muitos, mesmo quando somos dois.
    Pe. Fábio de Melo
    Obrigada querida pela amizade carinhosa!
    Um doce abraço, Marie.

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  8. (•ิ‿•ิ)✿

    Un petit coucou chez toi chère Olinda

    Bonne journée et GROS BISOUS d'Asie !

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  9. Querida amiga

    Impossível ler um texto assim
    e ainda ser o mesmo...

    ______________________________

    “A vida está onde os sonhos estão.”
    Aluísio Cavalcante Jr.

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  10. Que bom ter trazido aqui Mia Couto, que tanto admiro.

    Querida Olinda, um excelente dia---sem a chuva daqui.

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  11. ~ ~ Gratíssima. ~ ~

    ~ ~ ~ Dias agradáveis e luminosos. ~ ~ ~

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  12. Sabe mesmo bem ler Mia Couto! Acho que tenho aqui um dele, vou ver... tenho sim, "A varanda do Frangipani" :)
    Beijinhos

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  13. Mia Couto escreve que é uma preciosidade. Os livros dele são sempre uma boa companhia. Também gosto.

    Obrigada por partilhar.

    Beijinhos

    Isabel Gomes

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  14. Gosto muito do que o Mia Couto escreve,
    portanto gostei de o ver aqui.
    Desejo que se encontre bem.
    Bj.
    Irene Alves

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  15. Que leitura prazerosa! Se um fragmento da obra já inspira tanto, nada como lê-la por completo. Há escritores que são mesmo iluminados, como Mia Couto, que a todos agrada. Bjs.

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