sábado, 7 de setembro de 2013

Dona Ilda

Rosália acabara de vestir uns calções, pôr uma t-shirt e umas meias aderentes. A ideia era fazer uns alongamentos antes de sair. Nisso, ouviu um baque surdo vindo da rua e teve a percepção de que alguém tinha caído. Foi à varanda e viu a vizinha do nº 157 caída no chão, de barriga para baixo, com a bengala ao lado. Rapidamente, pegou nas chaves e foi a descer pelas escadas abaixo correndo o risco de escorregar. Lá fora, a senhora deixava ouvir uns queixumes:'ai não consigo levantar-me', foi ajudá-la mas não conseguiu erguê-la, achou melhor ir ao café da esquina da sua casa, a uns passos, pedir ajuda aos homens que costumam lá estar sentados a olhar para ontem, desde as primeiras horas da manhã. Logo agora, não havia lá nenhum. 

Chamou então a dona do café e vieram as duas, mas Rosália nesta altura esqueceu as dores nas costas, segurou a vizinha por debaixo dos braços e levantou-a em peso. No chão ficou um poça de sangue e a cara da senhora estava alagada, a testa já com um grande hematoma, a cana do nariz ferida, os óculos tortos. 'Vou chamar o 112', disse a Rosália, e a senhora muito trémula: ' Não, não, vou ao Centro de Saúde, está lá o meu marido'. Rosália insistiu e foi a correr buscar o telemóvel e um pano para lhe limpar o sangue.

Quando desceu só estava a dona do café que disse que ela tinha entrado em casa para lavar a cara. Rosália ficou aflita, com receio que ela desmaiasse lá dentro. Tocou duas, três vezes a campainha, por fim ela apareceu titubeando: 'Vou ao Centro de Saúde, está lá o meu marido'. Então, vamos fazer o seguinte: 'Sente-se nesta cadeira do café, vou à minha casa vestir-me e calçar-me e acompanho-a', 'Ah, se calhar não tem tempo nenhum', 'Faço questão de acompanhá-la, está bem?' Rosália recomendou à dona do café que olhasse por ela durante uns instantes.

A caminho do Centro de Saúde a senhora ia dizendo 'estes chinelos não prestam, fazem-me tropeçar', ' se calhar a vizinha não tem tempo nenhum e agora vai comigo'. Sossegou-a dizendo-lhe que tinha todo o tempo do mundo. Chegadas ao Centro de Saúde Rosália viu o marido da senhora e foi dizer-lhe o que se estava a passar, ele também com ar perdido, velhinho, frágil, com a sua bengala, um olho cego. Rosália nunca tinha falado com ele cara a cara. Disse-lhe para se deixar estar ali, sentado, que ia à procura de uma enfermeira a ver se podiam atendê-la.

Na enfermaria deram-lhe a primeira assistência, chamaram a médica de família que recomendou uma radiografia ao nariz. 'Então, tem quem vá com a senhora fazer uma radiografia ao nariz?'- perguntou a médica. Uma hesitação, depois disse: 'Tenho a minha filha mas ela só sai às 5'. 'E como é que a senhora se chama?' - 'Ilda' . 'A auxiliar depois vem trazer uma cartinha para levar, está bem'? - Dona Ilda, agora já encolhia os ombros, batia com os pés no chão em sinal de nervosismo. Mediram-lhe a tensão, não estava má.

Cá fora, reencontraram o marido que afinal tinha ido ao Centro de Saúde mostrar umas análises à médica, as quais se esquecera de levar. Conformado, disse:'Tenho de cá voltar amanhã'. Rosália ofereceu-se para os acompanhar até casa e telefonar à filha, então o vizinho foi dizendo que a filha trabalha num supermercado mas que não pode ter o telemóvel ao pé e que assim só depois das 5 é que poderia avisá-la. E que têm uma outra filha mas que está no Algarve. Rosália começou a ver que não podia deixá-los assim, sozinhos, frágeis, cada um com a sua bengala, segurando a mão livre um do outro, amparando-se. 

Perplexa, apercebeu-se de que apesar de ver, de vez quando, a senhora a passar na rua e de morarem praticamente a paredes-meias, há alguns anos, nem o nome dela sabia. Sentiu-se mal por isso. Apercebeu-se das suas falhas em relação aos deveres de boa vizinhança, de tanto que se ouve falar de pessoas idosas sozinhas ou isoladas e, contudo, pensamos que vizinhos desatentos são só os outros...




Meus  amigos

Este é um caso verídico que acabou bem, felizmente. Por volta das 10h veio um familiar ter com eles e Dª Ilda depois da radiografia soube que não tinha nada partido. No dia seguinte Rosália foi bater-lhes à porta para saber se estava tudo bem. Uns dias depois encontrou-os no supermercado ao pé de casa a fazerem as suas compras, ajudando-se um ao outro. Sorriu enternecida... e, agora, mais atenta. 

Desejo-vos um óptimo fim de semana.

Abraços

Olinda   

Imagem: internet

7 comentários:

  1. Olá Olinda,

    Tocante e muito realista. Quantas situações destas. A vida não é fácil especialmente para quem, velho, doente, sem forças, não tem alguém por perto, um amparo. E, nos dias de hoje, quantos o têm...?

    Espero que já esteja tudo bem consigo.

    Beijinhos, Olinda e felicito-a por estas palavras.

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  2. Bom dia
    São casos muito frequentes. O peso dos anos e a debilidade do nosso sistema faz-nos tropeçar. Já falo por conhecimento de causa. Os meus trinta anos já passaram há mais de trinta...
    Nesta situação teria ligado logo para o 112. Demorava menos tempo e a senhora não teria corrido tantos riscos.

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  3. A letra é um pouco difícil de ler,,,,Mas quem quiser aumentar para ler melhor...faz assim......
    Coloca o rato no texto, clica em ctrl e rola a roda do rato, para a frente e para trás...
    É uma beleza....
    Beijo

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  4. Realista e cheio de afectos. Sinto sempre um embargo na garganta quando vejo o abandono a que são entregues os mais velhos e frágeis. As mudanças na organização familiar geraram muita solidão.
    Ainda bem que esta é uma história que acaba bem...

    Beijinho grande.

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  5. As pessoas estão cada vez mais isoladas, não só as mais velhas. Mas, no caso das mais velhas, é mais difícil quebrar o isolamento (e também romper o egoísmo dos outros).
    Beijinhos, bom domingo!

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  6. E haverá tanta gente assim num País maioritáriamente idoso.
    No meu prédio e no vizinho os unicos idosos sou eu e meu marido, 66 e 70 anos, mas por enquanto sentimo-nos bem e sem problemas. No prédio ao lado uma senhora de 70 anos é também a mais idosa. Mas é muito ativa, vende peixe na praça.
    Um abraço e bom Domingo.

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  7. Ola amiga,parabéns pelo texto realista e que toca tão fundo em nossos corações.Meu grande abraço.SU

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