Morri precisamente às cinco da tarde de um dia 30 de Setembro. Calhou que justamente nessa manhã eu tinha completado mais um ano de vida e a Alda estava numa grande azáfama nos retoques finais de um jantar que queríamos oferecer aos amigos mais próximos e também a mais uns quantos esfomeados da cidade de Mindelo. Mas de repente caí no chão. Redondo, sem um ai, como um desamparado saco de batatas mal cheio.
Lembro-me perfeitamente: nada daquelas confusões de tonturas que fazem uma pessoa agarrar-se aos móveis mais próximos e levar na cambalhota tudo o que estiver à mão. Não senhor! Foi uma queda limpa, elegante, como se estivesse preparando uma sessão de flexões de braços na alcatifa da sala. Felizmente! De contrário todo o nosso serviço de cristal, uma porradaria de copos de tamanhos variados que estava já sobre a mesa, teria tombado comigo, e agora é que se poderia dizer e com razão que por cima da queda, coice! porque seria um prejuízo bastante considerável e eu mesmo ficaria cheio de pena, pois ainda que não seja particularmente bonito, está carregado de recordações pessoais e familiares, na medida em que há anos o tinha comprado na Casa Serradas, com pagamento a prestações, para oferecer à Alda como prenda de homenagem aos primeiros cem dias da nossa vivência.
(...)a Alda olhando-me com ar severo de quem se prepara para dizer, estas não são horas para brincadeiras de mau gosto! Fiquei, pois, à espera, só para ver como ela iria reagir àquela emergência inesperada, mas ainda se ria: Hoje não, disse enquanto me dava um pontapé na ilharga, hoje não está um bom dia para brincadeiras, estou cheia de trabalho, vem antes ajudar a Rosa a limpar os talheres. E baixou-se para me apertar o nariz, uma coisa que fazia sempre que me dava na cabeça fingir-me de morto.
Foi só então que deve ter reparado nos olhos do meu corpo, porque foi nesse momento que gritou, um grito que certamente me teria assustado se ainda estivesse vivo. (...)
As memórias de um espírito
Germano Almeida
excertos - pgs 11,12,23
excertos - pgs 11,12,23
Imagem:Internet
Uma escrita muito original e que me prendeu.
ResponderEliminarGermano Almeida tem esta forma de escrever algo jocosa mas com conteúdo, o que nos leva a entrar na realidade das ilhas.
EliminarBj
Olinda
Querida Olinda:
ResponderEliminarQue história tão horrorosamente bela e real!
Fiquei agarrada a ela. Eu, que ainda não consigo prender-me a nada, fiquei pendente do fim.
Beijinhos, amiga. Continue a dar-nos estes momentos de cultura.
Maria
Pois é verdade, Maria. Lendo o livro, vemos como o 'espírito', do lugar privilegiado onde está, vai comentando tudo à medida que chegam as pessoas para o velório. Mordaz, jocoso, acutilante. Já li dele mais alguns livros, nomeadamente, 'Estórias de dentro de casa' e 'Os dois irmãos', de que também gostei.
EliminarBeijinhos
Olinda
Trouxe-nos um bom naco de literatura, Olinda, com um sabor inconfundível. Cabo Verde tem uma matriz muito própria.
ResponderEliminarBeijo :)
Caro AC
EliminarObrigada pelas suas palavras.
Abraço
Olinda
Estive a ler com toda a atenção, porque pela primeira vez
ResponderEliminarsoube o que um espírito pensava. E como ele escreve bem.
Tenho a impressão que seríamos amigos...
Bj.
Irene Alves
E isto é só um pouco das primeiras páginas...
Eliminar:)
Bj
Olinda
Nossa, que profundo, diferente, novo.
ResponderEliminarOlinda um xero grande!
Olá,Ana Karla
EliminarUma maneira diferente de abordar a sociedade.
Outro xero. :)
Olinda
Saudades menina
ResponderEliminare pergunto: quando me encontro contigo para deixar a encomenda???
Lili, minha querida
EliminarTenho sido uma grande ingrata, não é?
Agradeço-te imensamente a tua generosidade em me ofereceres a tela do xaile. Irei buscá-lo. Combinaremos para um dia destes. Depois acertaremos os ponteiros. :)
Muito obrigada.
Beijinhos
Olinda
Também não conheço este autor, mas a julgar pela amostra pareceu-me interessante.
ResponderEliminarUm abraço