quinta-feira, 15 de março de 2012

Na Ribeira de Deus

Concentrada, como estava, a ler Na Ribeira de Deus, de Teixeira de Sousa, quase dei um salto quando soou o telemóvel. Um pouco atabalhoadamente atendi e era um colega a convocar-me para uma reunião urgente. E disse-me: É para agoraBom, pensei eu, deve ter acontecido alguma coisa deveras importante, com este calor e essa pressa toda... Quando lá cheguei encontrei-os a todos com cara de caso e vi logo que eles também não sabiam de nada. Nisto, entrou o nosso prime. Dispôs-se logo a iniciar o seu discurso. Com a sua voz bem colocada e fisionomia de rapaz de palavra e bem comportado, começou por dizer: Meus senhores, sabeis tão bem como eu, o que me tem custado as medidas tomadas até agora, incidindo, quase exclusivamente, sobre o rendimento das famílias, cortando aqui e ali, especialmente a última que me cortou o coração, que foi o corte do subsídio de férias e de natal aos funcionários públicos e aos reformados sem contar com o aumento do imposto sobre o valor acrescentado na electricidade, no gás, em bens essenciais. Então, o que me tem tirado verdadeiramente o sono é ver como o resultado disto tudo não respeita nem as pessoas com parcos recursos...por este andar qualquer dia voltamos ao tempo das cavernas. E esperemos que a tal glaciação de que se fala há já algum tempo não aconteça durante a minha legislatura. O que eu tenho a comunicar-vos é de importância tal que convoquei os senhores da troika, logo a fmi, as agências de rating, os mercados, ou seja, os nossos credores, bem como representantes dos países que ditam as regras na união, porque este dia vai ficar na História. Aí, eu já estava em pulgas, tomando nota de tudo afanosamente, de tal modo que a esferográfica me escapou das mãos e foi parar aos pés do orador, o que distraiu, por momentos, os presentes da solenidade do momento... Mas, o nosso prime não é homem para se perturbar com tão pouco. Agarrando de novo na palavra, como só ele, comunicou que tinha encontrado uma fórmula infalível para a resolução total dos nossos problemas, ultrapassando assim os sacrifícios que tem vindo a anunciar, para o desgosto daqueles que dizem que ele tem uma atracção fatal pela austeridade. De seguida, accionou um painel electrónico, qual coelho saindo da cartola, no qual apareceram relatórios, com todos os passos discriminados, onde constavam os buracos todos em que temos caído, sucessivamente... Em cada um deles, miraculosamente, a palavra inexistente apareceu de forma iniludível. Todos, incluindo eu, bouche bée, deixámos escapar um AH! Agora, meus senhores prestai, por favor, muita atenção, porque vou explicar-vos, minuciosamente, como foi possível resolver da noite para o dia, o maior problema de todos os tempos deste querido país. Nisto, eu ouvi um som estridente, o telemóvel, a princípio não soube identificá-lo, depois um estrondo, era o livro que estava a ler rolando pelo chão e despertando-me definitivamente...


25 comentários:

  1. Menina...! Que belo texto! Que fina ironia!

    Que inspirada, estava, Olinda e que forma elegante de fazer crítica!

    Adorei.

    Um beijinho, Olinda e parabéns por este fantástico texto.

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    1. Oh, minha querida, muito obrigada.

      Nem sei o que dizer perante tão lindo comentário...

      Agradeço-lhe ter tido a paciência de ler, a esta hora, este texto que depois achei um pouco extenso.

      Beijinhos e Boa noite.

      :)

      Olinda

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  2. Querida Olinda:
    Isso não foi sonho, foi pesadelo. Sonhar com o prime? Faço ideia, do estado em que ficou.
    Adorei o texto.
    Beijinhos
    Maria

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    1. :))

      Querida Maria

      E não é que é mesmo... :))

      Obrigada

      Beijinhos

      Olinda

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  3. Gostei! :)
    O amigo do prime também tem soluções de sonho:
    http://exiladonomundo.blogspot.com/2012/03/o-quarto-elemento.html
    E, nem sei bem porquê, lembrei-me disto:
    http://exiladonomundo.blogspot.com/2011/03/o-pesadelo-da-scarlett.html

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    1. Olá, Exilado

      Irei ver com todo o gosto... :)

      Obrigada.

      Olinda

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    2. Olá, Exilado

      Não consegui aceder ao segundo endereço.

      Dá-me uma ajuda? :)

      Olinda

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    3. Obrigado pelo "com todo o gosto" :)

      O problema do segundo endereço deve ter sido temporário, pois o endereço é mesmo esse:

      http://exiladonomundo.blogspot.com/2011/03/o-pesadelo-da-scarlett.html

      Mas se o problema persistir, por favor avise-me, que eu envio o texto por e-mail.
      Cm todo o gosto!

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  4. Só agora reparei que já tinha lido também o segundo (e comentado)...

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  5. Acho que fiz confusão quanto aos comentários, reitero o que disse no penúltimo :)

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    1. Consegui encontrar o post! Tive de procurar pelo tema constante do endereço :o pesadelo de scarlett, inserindo-o na pesquisa Google.

      Obrigada, Exilado, pela oportunidade que me deu em ler um texto tão bem escrito.

      O Quarto Elemento é também excelente, uma crítica com muito humor e que nos mostra bem como já não há aonde ir buscar mais...

      Grande abraço

      Olinda

      :)

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  6. Olá Olinda,
    Ainda bem que "A ribeira de Deus" a acordou desse pesadelo,
    mas infelizmente continua, mesmo depois de acordada. Ficamos nas margens, deixando fluir as águas turvas, à espera de algum barco que nos atravesse para outro lado mais acolhedor!
    Um "récit" fantástico!
    Muitos bjis

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    1. Ola, Manuela

      Lembrou-me agora os autos (das barcas) de Gil Vicente. :) Sim, esperemos que nos calhe uma Barca com um timoneiro que nos leve a bom porto e que a outra margem seja deveras um lugar acolhedor.

      :)

      Bom fim de semana

      Olinda

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  7. Um texto divertidíssimo, que se lê de uma assentada, sem se notar o seu tamanho ;)

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    1. Obrigada, Cristina, é um prazer vê-la aqui, a ler e a apreciar os fios com que este Xaile se vai tecendo.

      :)

      Um bom fim de semana.

      Bj

      Olinda

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  8. Olá querida Olinda passando correndo porque tenho muitos votinhos a computar e vim só validar o teu voto de hoje no pena de ouro... olha amiga somente o teu primeiro voto foi computado a segunda poesia não ok? é um voto por dia. beijos doces

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    1. Oi, Lindalva

      Irei aí deixar o meu voto para o poema da Selma de que também gostei muito.

      Obrigada por ter aqui vindo mesmo com todo esse trabalho do 'Pena de Ouro'.

      Bom fim de semana.

      Bj

      Olinda

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  9. Olinda, um texto dos mais refinados e interessantes.
    Esse prime e seus dons, pareceu-me de longe com uma piada do Bocage na corte do rei...
    Mas é outra história, até porque aqui tivemos o nosso prime também.
    Um abraço e um beijo.

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  10. Ai, o Bocage, impagável e brejeiro, com as suas piadas...
    E também um grande poeta. Estou a lembrar-me, por exemplo, destes sonetos:

    'Camões, grande Camões, quão semelhante
    Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
    Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
    Arrostar co'o sacrílego gigante;' ...

    e

    'Já Bocage não sou,
    À cova escura
    Meu estro vai parar desfeito em vento...
    Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
    Leve me torne sempre a terra dura.' ...

    E temo-nos esquecido um pouco dele, não é?

    :)

    Um bom fim de semana, caro Antônio.

    Abraço

    OLinda

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  11. Oi Olinda!
    Que pena o seu livro ter caido!
    Talvez houvesse um final feliz, mas não vejo luz, vejo o peso com que todos andamos, o fardo torna-se pesado demais para quem não tem emprego, aonde pode esta gente satisfazer as mais elementares necessidades, se houver familia amiga na retra guarda ainda muito acusto se vão segurando, mas mesmo assim como se pode sentir essa gente ...envergonhada ter de estender a mão.
    A bola de Neve vem rolando desde sempre.....
    Vamos ter esperança...
    Até breve
    Herminia

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    1. Querida Hermínia

      Aí é que está: a mania que os sonhos têm de acabarem quando estamos quase a saber o seu desfecho... :)
      As necessidades são muitas, os impostos continuam a agravar os salários e a inter-ajuda nas famílias não têm condições para se eternizarem. Teremos de voltar às nossas capacidade de povo labutador e procurarmos soluções nas 'pequenas coisas'.

      Beijos.

      Olinda

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  12. Bem me parecia que você estava a sonhar. Bom que ainda sonha com o fim da crise. Eu acho que ela é interminável. Pois não é verdade que o País nasceu de uma crise de autoridade entre D. Afonso Henriques e a sua augusta mãe? E daí para cá quantas crises o País já passou? Passou? Na verdade eu acho que elas são como a Fénix. Por muito que tentemos exterminá-las renascem sempre.
    Um abraço e bom Domingo.

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    1. Amiga Elvira

      'Deus quer,o homem sonha e a obra nasce', lá dizia o nosso querido F.Pessoa. Mas podemos inverter um bocado as coisas, começando por sonhar e a esperança de que tudo conseguiremos por acréscimo.

      :)

      Beijinhos

      Olinda

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  13. Olinda, Querida

    Os pesadelos, como os Sonhos, são realidades que: ou não aconteceram ou acabam por nos acontecer.
    Belo modo de contar.
    Amei.

    Beijos

    SOL
    http://acordarsonhando.blogspot.pt/

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    1. Caro Sol

      :)

      Uma maneira sábia de ver as coisas.

      Abraço

      Olinda

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