À Lua não seria permitido deixar qualquer sombra, nessa noite, iluminar, por um segundo, qualquer coisa para o eterno, ajudar o capitão a perceber a que imagem orava ou a parca visão de Luís a encontrar, naquele inferno, a pele breve de Dinamene.
Luís alcançou a caixa de madeira que rodopiava no porão. A sua fechadura estava violentada e as primeiras folhas de papel podiam já ver-se, espreitando pela tampa entreaberta, com os cantos amarelecidos a serem tragados, rapidamente, pela humidade.
Sentindo o casco abrir por debaixo dos seus pés nervosos, agarrou o manuscrito junto ao peito, apertando com toda a força que podia despender, e, gatinhando, gritando a voz rouca o nome que mal conseguia soletrar, percorria os escombros da barcaça que boiavam por entre a angústia.
Do lado de lá da barreira de destroços, com os cães presos por debaixo das traves latindo contra o temporal, a mulher esperava por ele. Parecia que tinha o mesmo brilho de sempre, solo sagrado em tempo de guerra, um oásis de paz a meio da chuva. O seu silêncio quase calava o ruído mais forte do rio em fúria.
Luís aproximou-se mais, Luís chegou-se mais um pouco, as duas metades do casco afastavam-se entre eles para que as mãos se tocassem. Vendo que ele não avançava, antes de petrificara diante do abismo, ela lançou-se para o seu lado do fim do mundo, para que pelo menos abraçá-lo ainda fosse possível. As palavras que terão trocado nunca ninguém as saberá. Os braços, envolvendo os corpos, amparavam ainda o manuscrito.
Luís agarrava-os aos dois, à vida, ao pouco de vida que lhe restava e, como duas crianças, fechavam os olhos e apertavam-nos contra o rosto, como se não ver significasse que o tempo cessasse de existir, como se as coisas se interrompessem pelo simples facto de ninguém estar a olhar.
O barco estava a ir ao fundo, a ir ao fundo para nunca mais. Os braços desenlaçaram-se e os corpos foram atirados ao prazer da rebentação das ondas. Chovia ainda, chovia cada vez mais. Dinamene via Luís perder-se por entre os esbracejares dos marinheiros à deriva; Luís via Dinamene olhá-lo, quase sem lutar, quase à beira de aceitar que era demasiado tarde para qualquer promessa.
Excerto: 10 histórias de amor em Portugal, de Alexandre Borges, pgs 30/32
Abraços
Olinda
Continua...
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imagem: net
Boa tarde de Paz, querida amiga Olinda!
ResponderEliminarUma história de peso emocional imenso. Com muita afetividade.
O Amor aos animais é gerador de muitos salvamentos. Temos visto no Sul vários heróis.
Amei a espera da mulher e o contexto que descreve o encontro sofrido:
"Um oásis de paz a meio da chuva."
Ah! Que belo!
Assim é...
Há silêncios que gritam.
Quando se acabam as forças para se lutar por algo ou alguém:
"Era demasiado tarde para qualquer promessa." Só nos resta o silêncio.
Lembrando do tempo de estudo da literatura portuguesa. Que bom!
Adorando a série atual.
Tenha uma nova semana abençoada!
Beijinhos com carinho fraterno
Querida Rosélia
EliminarHá histórias de amor que resistem ao tempo.
Assim também os sacrifícios havidos para que
se tornassem imortais.
Continuamos com esta publicação que ainda
tem algumas nuances.
Beijinhos
Uma triste e linda cena de amor, vou continuar acompanhando, arriscando o nome de Camões. Não conheço a história, ficando bem curiosa. Boa tarde, bjsss
ResponderEliminarCamões que se vai ver a braços com uma decisão muito
Eliminarimportante. Conscientemente ou não...
Beijinhos.
Um excerto que muito gostei de ler.
ResponderEliminarCumprimentos poéticos
Muito obrigada.
EliminarAbraço
Me encantó . Bella escena. Te mando un beso.
ResponderEliminarMuito obrigada.
EliminarUn beso.
Olá, amiga Olinda
ResponderEliminarLendo mais este excerto desta história, percebi que entra um personagem que até aqui não estava presente. A Dinamene. Que será porventura a sua musa inspiradora, da qual fala nos Lusíadas.
Vou continuar a acompanhar esta interessante história de amor.
Então, até ao próximo capítulo.
Continuação de feliz semana, com muita saúde e paz.
Beijinhos.
Mário Margaride
http://poesiaaquiesta.blogspot.com
https://soltaastuaspalavras.blogspot.com
Olá, caro Mário
EliminarUma história de amor muito interessante, na verdade.
Muito obrigada pela sua presença.
Abraço.
Estou a seguir a história.
ResponderEliminarMuito obrigada.
EliminarUm abraço.
Bom dia Olinda,
ResponderEliminarNeste capítulo já se vislumbra que seria Camões tentando salvar o manuscrito dos Lusíadas, no meio de todos aqueles destroços daquele naufrágio terrível.
Um texto que nos faz visualizar aquela tragédia como se dela fizéssemos parte.
Beijinhos,
Emília
Vou subindo tentando chegar ao fim da história do nosso anfitreão sem tempo . E, "antes que diga ...mene..."
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