A Orlanda:
a quem, ao longo destes últimos anos,
no trato diário, fui surripiando,
às vezes traiçoeiramente,
muita da matéria desta narrativa,
quem sabe se impossibilitando-a
de um dia torná-lo sua...
Empurrados do interior, os povos buscavam o litoral na esperança de um mandioquinha, de um caldinho de peixe, de um cana para chupar, ou de folhas verdes para mastigar. Qualquer coisa que lhes desse, ao menos, a ilusão de alimento. Mas nas povoações da beira-mar, mesmo nas terras maiores, os haveres tinham sido também arrasados pelos ventos da miséria. Nem a sopa da Assistência evitava que no alvor da madrugada a carroça da Câmara levasse os que haviam tombado, de noite, na rua, inteiriçados, frios. Nem a sopa da Assistência o evitava, bem se pode dizer: as bocas famintas, senhor eram às dezenas de milhar.
De ponta a ponta, um pesadelo perpassava pelas aldeias e casalejos galgando pela amarelidão da terra nua e requeimada.
Dondê quelas bananeiras verdinhas de cachos pendidos em arco ao rés do chão? Dondê queles pés de papaia carregadinhos, e quelas batatas-doces e quele feijão, e quele mandioca, quele nhame, e quele milho crescendo na achada, dando a fartura da gente e dos animais? Ervas, rebentos, raízes, tudo sumido na voragem da sede e do calor.
Lá no interior, casas intactas só as de gente rica ou remediada, e nem sempre. Tantas sem janelas, sem tecto, sem portas, ficaram abandonadas na paisagem descarnada.
A maldição varrera a ilha. A maldição da estiagem. Da fome. Os sobreviventes dessa fúria ciclónica, quem eram? Restos da vida absurda e degradada na luta impiedosa pela sobrevivência.
E nesse tempo da fome a ilha de São Vicente era o porto de salvamento...
HORA DI BAI - pgs 7/8 - Manuel Ferreira
***
Assim começa o Autor o romance Hora di Bai, o qual retrata o drama do povo cabo-verdiano nas fomes dos anos 40 do século XX. A trama do livro inicia-se em 1943 com uma viagem de S. Nicolau para S. Vicente, a bordo do navio Senhor das Areias onde se encontram refugiados que tentam escapar à situação de fome e miséria. A narrativa conclui-se com uma leva para S. Tomé, pois a fome, afinal, também assolava S. Vicente.
Manuel Ferreira (Gândara dos Olivais, Leiria, 18 de julho de 1917 — Linda-a-Velha, Oeiras, 17 de março de 1992) foi um escritor português que se tornou conhecido por divulgar a literatura e a cultura africanas de língua portuguesa.
Licenciou-se em Ciências Sociais e Políticas pela Universidade Técnica de Lisboa. Durante o serviço militar, foi mobilizado como expedicionário para Cabo Verde, em 1941, tendo lá permanecido seis anos, até 1947. Na cidade do Mindelo, na Ilha de São Vicente, conviveu com os grupos intelectuais cabo-verdianos ligados às revistas Claridade e Certeza.
Casou com a escritora cabo-verdiana Orlanda Amarílis,
Continue a ler aqui
Tenho falado, no Xaile de Seda, desse grande divulgador cultural nomeadamente em relação à Antologia de três volumes, em que compila a Poesia dos cinco países africanos conhecidos por PALOP: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, e que ele intitulou, "No Reino de Caliban".
Através do percurso literário de Manuel Ferreira, que dedica a sua vida à Cultura dos Países Africanos de Língua Portuguesa, procurando dar-lhe visibilidade através das suas obras, além de criar a disciplina: Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, na Faculdade de Letras de Lisboa, aprendi a conhecer e a compreender a Literatura desses países. Hoje, se tento divulgar alguns aspectos dessa realidade, devo-o a ele. Sem esquecer, claro, Isabel Castro Henriques, de quem já falei algures neste blog.
Acabei de ler há dias "Hora di Bai" e S. Vicente não era assim e ainda bem!
E com razão.
Fiquem bem, amigos.
Abraços.
Olinda
====
Título do post - na pag 62
Post "Por onde andei..." aqui
Imagem - da Ilha de São Nicolau
Hoje fiquei impressionado com a sua publicação ao ver a foto de Manuel Ferreira. Convivi com o escritor alguns anos, fiz para ele algumas ilustrações e capas para os seus livros infantis. Tenho dele memórias muito inesquecíveis pelo que representaram do seu excepcional carácter. Conheci também Orlando Amarilis não tendo, no entanto, convivido com ela.
ResponderEliminarObrigado por me ter recordado um dos homens que influenciaram a minha vida.
Um abraço.
Digo: Orlanda em vez de Orlando.
EliminarAprecio bastante o seu comentário, por ter privado de perto com Manuel Ferreira. Os elementos que me traz enriquecem a minha publicação, acrescentando mais quanto ao carácter do autor e
Eliminartambém em relação à sua faceta como escritor.
Também Orlanda Amarílis como escritora tem o seu lugar cativo na
Literatura Cabo-verdiana.
Muito obrigada e um grande abraço.
Olinda
Tu sempre com ótimas escolhas para compartilhar aqui.
ResponderEliminarLinda leitura fiz !
Desejo ótimo fds!
beijos praianos, tudo de bom,chica
Obrigada, querida Chica.
EliminarContinuação de boas férias.
Beijinhos
Olinda
Manuel Ferreira, até pode haver romanceado os tempos e os costumes, mas há muitas marcas de verdade.
ResponderEliminarExcelente este trazer-nos á frente as lembranças do tempo.
Grato, Olinda.
Beijo
SOL da Esteva
Beijo
SOL da Esteva
Tem razão, amigo Sol da Esteva.
EliminarAs fomes, as secas, em Cabo Verde são uma realidade,
ainda mais em tempos idos.
A ficção residirá apenas nas falas que são, contudo,
retiradas do quotidiano.
Boa semana.
Abraço
Olinda
Bom sábado de paz, querida amiga Olinda!
ResponderEliminarVivo muito de perto a realidade narrada pelo escritor acima.
Entre o campo e a cidade (onde moro) e a selva de pedra (capital), vejo a desolação das pessoas do campo... e da cidade grande... a saudade das pessoas da cidade e a necessidade de um cantinho verde na selva de pedra.
Os verdes suspensos estão no auge da moda...
Qualquer vaso serve para plantar uma rúcula, um alface, uma semente de vida e oxigênio.
Por que será?
A humanidade está coberta de concreto dos pés á cabeça. a ganância pelo progresso deu no que deu.
O rústico, o simples e o verde são o pano de fundo de uma vida mais equilibrada e saudável.
Tenha um final de semana abençoado!
Beijinhos
Querida Rosélia
EliminarSão situações que se repetem em vários lugares
que têm em comum climas agrestes.
Não há dúvida que a natureza verdejante é o que há
de mais lindo e agradável.
As cidades semeadas de arranha-céus é o oposto
daquilo que o ser humano precisaria para uma
vida feliz.
Desejo-lhe boa semana, amiga.
Beijinhos
Olinda
Li-o recentemente!
ResponderEliminarCabo Verde tem grandes escritores, Manuel Ferreira, não sendo ilhéu é como se o fosse de tal forma é realista a sua narrativa.
Abraço
Registei o seu comentário com agrado, com a intenção
Eliminarde o citar quando fizesse uma publicação com este livro de
Manuel Ferreira.
Muito obrigada, Rosa dos Ventos.
Abraço
Olinda
Mais uma oportuna divulgação de um autor que não conhecia.
ResponderEliminarObrigado pela partilha.
Abraço de amizade. Olinda.
Juvenal Nunes
Há autores que ficam anos e anos sem serem referidos e,
Eliminarno entanto, deixaram uma marca indelével na Cultura
Portuguesa e na dos lugares por onde passaram, como é o
caso de Manuel Ferreira.
Obrigada pelo seu comentário, caro Juvenal
Abraço amigo.
Olinda
Gostei do início.
ResponderEliminarVou ver se encontro este livro na livraria onde normalmente vou.
Boa semana.
Abraço.
Contente por ter gostado.
EliminarÉ um livro com uma escrita mesclada de
passagens no português gramatical e
outras com as roupagens próprias das
influências do crioulo.
Também lhe desejo uma boa semana.
Abraço
Olinda
Interessante partilha. querida Olinda.
ResponderEliminarTe desejo uma semana abençoada.
Beijinhos
Verena.
Olá, Verena
EliminarMuito obrigada por ter vindo.
Também lhe desejo uma semana
esplêndida.
Beijinhos
Olinda
Fui lá duas vezes, em 64, quando estive destacado na zona aérea Cabo Verde-Guiné. Pouco conheci, claro, mas ficou-me na memória aquele mar...
ResponderEliminarNão conhecia o Autor, mas apreciei a escrita!
Abraço, amiga Olinda.
Olá, Jorge Esteves
EliminarEm 64 este livro de Manuel Ferreira tinha acabado de sair (1962), na linha de Claridade e Certeza.
O Mar impressiona e deixa sempre saudades.
Abraço
Olinda
Um autor que não conhecia, e que adorei descobrir por aqui!
ResponderEliminarAchei um retrato super actual... talvez não do presente de S. Vivente, e São Tome... mas de muitos outros pontos do continente africano, onde uma crescente desertificação... é uma realidade... como resultado de muitos fenómenos climáticos, sucessivos ao longo de vários anos... e que estão também por detrás de muitos fluxos migratórios... se não levarmos em conta outros factores sociais... como guerras e golpes de estado...
Finalmente passando por aqui, de novo... após um Verão novamente problemático, devido a problemas de saúde da minha mãe... ainda não totalmente ultrapassados, mas numa fase bem mais controlada: dermatite atópica, conjugada com má circulação crónica nas pernas... mais uma vez despoletada, por um ligeiro covid primaveril... e sem outros sintomas problemáticos... mas que desregulam nos meses seguintes, a parte circulatória...
Ando aos poucos a retomar as visitas, a muitos cantinhos que gosto pela blogosfera...
Hoje ainda passando mais de fugida, Olinda... mas amanhã com tempo, virei por aqui de novo, espreitar o que mais recentemente fui deixando escapar na pressa dos dias...
Um beijinho grande!
Ana
Querida Ana
EliminarAdorei os seus comentários e a paciência e amizade em percorrer várias publicações minhas, no "Xaile de Seda". Ainda mais sabendo dos problemas de saúde da sua Mãe e a assistência que lhe dá.
Manuel Ferreira é um autor que muito admiro e o mais interessante é que é o primeiro post que lhe dedico, embora já o tivesse referido em várias situações. "Hora Di Bai" é o retrato o mais fiel possível dos tempos da fome dos anos 40, e de outra tragédia: os "contratos" para São Tomé. Uma outra escravidão como o autor não deixa de referir pela boca de alguns personagens.
Vou reler os comentários que teve a amabilidade de inserir nos outros posts.
Tenha dias bons e abençoados.
Beijinhos
Olinda
Bom dia minha amiga Olinda.
ResponderEliminarObrigada por se preocupar.
Não ando nada bem nem com forças para fazer o que quer que seja Peço desculpa pela minha ausência.
Desejo que esteja bem.
Um beijo.
Querida Graça
EliminarLamento e desejo que melhore depressa.
Não tem por que se desculpar. Às vezes
acontece ficarmos assim sem ânimo.
Grata por vir aqui deixar-me estas palavras.
Beijinhos
Olinda
📝👏👏👏👏
ResponderEliminarGrata.
EliminarAbraço
Olinda