quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

o mar não se vê: nele nos vemos nós

 


   O navio faz-se ao mar e, por um momento, parece-me que quem se movimenta é o continente. Não será num barco que viajaremos. Navegaremos como sempre se viaja: através de lembranças e sonhos. Mas eu já não lembro nem sonho. Tenho quinze anos. Vou para longe de mim, sem bagagem e sem documentos. Mas levo comigo o meu filho, o princípio da minha eternidade.

   A meio da noite, Dabondi e eu somos chamadas ao camarote do comandante Jaime Leote do Rego. À entrada, Dabondi toma nas suas mãos os braços do militar. É raro uma das nossas mulheres dar-se a esses avanços. A rainha, porém, simpatizou com o branco de barba grisalha. A afeição é recíproca: o tenente fita a rainha como se lhe estudasse o rosto. Perfeito, é ela quem eu queria, confirma ele com entusiasmo.

   Ao fundo do camarote está uma tela suportada por um cavalete. Sobre uma cadeira estão pousados dois pincéis e uma paleta onde combinam diferentes tons de azul. Quero pintar o mar, confessa. Foi por isso que exigiu a presença de Dabondi. No cais, diz ele, escutei esta mulher. Diz-lhe que volte a cantar!

- Não sou eu que canto - argumenta Dabondi. Outros usam a minha voz.

- Diz a essa mulher que não estou habituado a pedir.

   A rainha sorri e responde: Pergunta a esse homem se recebe ordens para sonhar.

   Com a ponta dos dedos Dabondi afaga a tela com delicadeza. Acredita que está perante um tear e que o comandante é um tecelão. Com gestos redondos, como se falasse com os braços, o português apresenta a obra por começar: o mar não se vê: nele nos vemos nós. Depois acrescenta: Eu vi o oceano quando escutei  esta mulher a cantar no cais.

   Oferece um cálice de aguardente à rainha. Dabondi vaza o cálice de um trago. Acena o copo vazio reclamando por uma segunda dose. Se me escutou cantando, este branco não pode ser um inimigo, diz ela. E acrescenta: A bebida é boa, vou fazer-lhe a vontade. Depois a rainha solta a voz. O comandante cerra as pálpebras e, lentamente, as águas do mar inundam o seu camarote.

  Com o braço direito soerguido, os passos afinados com a canção da rainha, o comandante Jaime Leote do Rego avança na minha direcção e pergunta:

- Já alguma vez dançaste com um  homem branco?

Excerto, pgs. 106/107, O Bebedor de Horizontes, 3º volume da Trilogia, "As Areias do Imperador" - Mia Couto

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Fala de Imani que em conjunto com o Sargento Germano de Melo nos dão a conhecer esta parte da História de Moçambique, desenvolvendo uma narrativa epistolar. O sargento é uma personagem fictícia e em relação a Imani penso que se passa o mesmo. Não consegui encontrar qualquer referência como sendo real. 

Mas ambos no desenrolar dos três livros têm a sua própria história. Uma história de vida. Íntima. E trágica. Espelho de outras vidas, talvez.

Jaime Leote do Rego, militar e oficial da marinha portuguesa, é comandante do navio onde seguiam, para o exílio, Ngungunyane, as suas sete mulheres, o filho Godide, o tio Molungo, o rival Zixaxa e as suas três mulheres. Para além de outros presos.

Dabondi é uma das sete mulheres do imperador.


O mar, esse, é uma entidade temida pelos vátuas. 
Um pavor, quando tiveram de o enfrentar, embarcados 
para destino desconhecido.



Elma Uamusse
Uma voz poderosa


Ao escritor foi atribuído o Prémio Jan Michalski, pela edição francesa da obra. O júri reconheceu “a excecional qualidade da escrita” de Mia Couto, que conjuga, “subtilmente, oralidade e narração literária e epistolar, contos, fábulas, sonhos e crenças, no seio da realidade histórica de Moçambique, no final do século XIX, na luta contra a colonização portuguesa”.*

Já Carlos Maria Bobone diz, em relação à Trilogia, que a obra não faz jus ao tema. Segundo ele: Mia Couto não podia ter escolhido melhor tema para a sua trilogia; e pior do que não ter feito um bom romance é ter conseguido fazer de um bom tema um mau romance.**

Poderá ver no "Xaile", dois posts sobre o assunto, Ngungunyane I, Ngungunyane II. Neles faço referência a:

Ungulani Ba Ka Kosa, que escreveu dois livros, "Ualalapi" e "As mulheres do Imperador", condensando-os num só volume,

e a:

Mia Couto, sobre o primeiro volume desta Trilogia que contém os seguintes títulos: I Mulheres de Cinza; II A Espada e a Azagaia; III O Bebedor de Horizontes.

Cingindo-se aos factos históricos, Mia Couto apresenta-os imprimindo-lhes o seu cunho peculiar, inconfundível.

Boa quinta-feira, meus amigos.

Abraços
Olinda


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Leia, se lhe interessar:
Prémio Jan Michalski*
Artigo de Carlos Maria Bobone**

Imagem: pixabay

29 comentários:

  1. Olá Olinda querida
    Texto muito bonito e poético de Mia Couto, gostei muito.
    Especialmente da parte : "não trago bagagens nem documentos, só meu filho que é o princípio da minha eternidade...."
    Música linda de Moçambique, realmente a voz da cantora é maravilhosa.
    Uma boa quinta-feira pra ti, beijinhos

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  2. Excerto maravilhoso e a delicadeza de cada parágrafo e a descrição das cenas encanta! Muito lindo! beijos, ótimo dia! chica

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  3. Olá Olinda!
    Texto profundo, que nos leva a refletir sobre
    o caminho que trilhamos, a bagagem que carregamos e o legado que vamos deixar.
    Tenha uma semana repleta de luz
    Abraços Loiva

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  4. Mia Couto e sua forte veia poética.
    Temos livros fantásticos como esse que nos apresenta,pena muitos não terem acesso nem quem os motive.Obrigada pela indicação.
    Grande abraço

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  5. A afeição é recíproca...

    Olá, querida amiga Olinda!
    Vi uma identificação com o título do seu post na frase acima.
    Tão bonito é quando a afeição é recíproca.
    E o mar me vê integralmente pois a amizade é bem recíproca.
    Gostei muito.
    Tenha um anoitecer abençoado!
    Beijinhos

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  6. Sempre leio boas recomendações de Mia Couto e ando me preparando para mergulhar em seus escritos. Hoje ao ler teu post minha vontade está ainda mais aguçada, querida Olinda.

    Como é bom encontrar bons artesãos das palavras, não é!?
    Grata pela linda partilha!

    Um abraço!

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  7. Gracias por la reseña, se un libro muy interesante. Lo tendré en cuenta. Te mando un beso.

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  8. Que gosto é ler Mia Couto! Ainda não li este livro, mas está na calha para ser lido. Este pedacinho despertou-me ainda mais o interesse. Obrigada, minha Amiga Olinda. Gostei muito de ouvir Selma Uamusse.
    Um bom fim de semana.
    Um beijo.

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  9. Olá querida Olinda
    Mia Couto é fantástico. Este texto faz-nos pensar, tem uma mensagem muito importante. Muito obrigada
    Que 2023 lhe traga muita saúde e alegria
    Muitos beijinhos

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  10. Gosto de ler Mia Couto, quer em prosa, quer em verso.
    É muito talentoso, muito criativo, muito africano...
    Pelo mesmo motivo, gostei do vídeo e de conhecer a cantora.
    Ainda a retribuir votos de felicidade, deixados no 'Convívio dos Poetas'...
    Publiquei hoje um comentário seu de 2016, a propósito de Ópera. Sorrisos...
    Bom fim de semana. O meu abraço.
    ~~~~~~~~~~~~

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  11. Excelência no escrever e sentir. Mia Couto tem o sabor africano no contar histórias.
    Amei a partilha, Olinda.


    Beijo
    SOL da Esteva

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  12. Boa tarde Olinda,
    Precioso este texto de Mia Couto que li de um fôlego.
    Obrigada por me ajudar a desbravar estas pérolas da literatura em Lingua Portuguesa.
    Gostei imenso de conhecer a Cantora e a sua voz maravilhosa.
    Um beijinho e um ótimo fim de semana.
    Ailime

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  13. Mia couto tem o poder de nos fazer degustar a sua obra de um só fôlego
    E aqui não foi diferente.
    Gostei ouvir esta cantora que tem uma bela voz
    Beijinhos e uma linda semana, querida Olinda

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  14. Texto muito bonito que muito gostei de ler. Grato pela partilha
    .
    Feliz domingo.
    .
    Poema: “” Sopro de correria e suor ””…
    .

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  15. Não li nenhum destes livros, mas aprecio imenso a escrita do Mia Couto, que é um dos grandes autores atuais da literatura portuguesa.
    Boa semana, amiga Olinda.
    Um beijo.

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  16. Olá Olinda!
    Que sua semana seja repleta de luz
    Abraços Loiva

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  17. Já li alguns livros de Mia Couto.

    Selma é admirável tanto como cantora como pessoa.

    Graças por este post que os juntou.

    Minha querida Olinda, beijinho e feliz semana :)

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  18. Bom dia. Amei a forma como nos apresentou a obra deste escritor que gosto muito. Excerto maravilhoso . Não li, mas coincidentemente nas postagens do perfil que tenho em parceria com a Carmen Luiza, fizemos um post com uma citação, fragmento do primeiro livro. Grata pela partilha, sempre instigante. Que caminhemos unidas pelos nossos espaços em 2023,BJs.

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  19. Gosto imenso de ler Mia Couto.
    Obrigado por esta bela partilha.
    Beijinhos

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  20. excelente Mia Couto...
    quando "for grande" quero escrever assim---
    abraço,. amiga Olinda Melo

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  21. Mia Couto é sempre muito bom.
    Gostei muito do post.
    Beijinhos
    Coisas de Feltro

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  22. Um dos escritores comtemporâneos de incontornável qualidade com um estilo oralizante , vivo. Adoro a sua poesia . Um grande pensador e filósofo
    Obrigada, Olinda, por este trabalho verdadeiramente notável!
    Um beijinho e muita saúde!

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  23. Olá, querida Olinda, retornando de uma pequena pausa, não me afasto muito não. E no retorno, vejo essa pérola de postagem com o grande Mia Couto a quem gosto muito de ler. Maravilha! E adoro sua poesia. O vídeo também gostei muito, que voz! Um vídeo com imagens muito interessantes, cai no meu gosto esse conhecer.
    Deixo pra você meu carinho, e meu desejo de um 2023 com muita paz, muitas realizações, e muita saúde - o principal! E vamos juntas galgar esse novo 2023 que deverá ser melhor!
    Beijinho, querida amiga.

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  24. Amiga Olinda,
    Eu acho “António Emílio Leite Couto - Mia Couto”, uma pessoa extremamente aplicada e competente em seus escritos.
    Um carinhoso beijo. E ainda em tempo, que este (2023), seja repleto principalmente de saúde, para ti e para os teus!!!

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  25. Passei para ver as novidades.
    Aproveito para lhe desejar a continuação de uma boa semana, amiga Olinda.
    Um beijo.

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  26. Querida Olinda, depois de ler esta excelente publicação já decidi: vou ler a trilogia "As Areias do Imperador".
    Com o vídeo emocionei-me com a voz portentosa e com as imagens da minha cidade do coração. Obrigada!!!
    Beijo, fica bem.

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  27. Gosto imenso de Mia Couto, a trilogia confesso que ainda desconheço, mas adorei o excerto que nos apresentou... tal como o tema musical... outra novidade absoluta para mim!
    Belíssimas partilhas! Deixo um beijinho, e votos de continuação de uma excelente semana!
    Ana

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