quinta-feira, 8 de outubro de 2020

A Virgem Guerreira

Entretanto o criador dos homens e dos deuses, altamente sentado no cimo do Olimpo, não observa o espectáculo com olhos indiferentes. O Pai instiga ao cruel combate o tirreno Tárcon, e mediante poderosos aguilhões anima a sua cólera. Por isso é que Tárcon investe sobre o seu cavalo e no meio da carnificina e das colunas que cedem; com ditos de toda a espécie ele encoraja as alas, interpelando cada um pelo seu nome e reconduzindo ao combate os soldados vacilantes: "Que medo, ó tirrenos insensíveis à vergonha e sempre indolentes, que cobardia invadiu os vossos corações? Uma mulher desbarata-vos e faz os vossos esquadrões voltar as costas? Para que serve este ferro?, estes dardos inúteis que trazemos nas mãos? Não éreis tão indolentes com Vénus e as suas lutas nocturnas, nem quando, ao sinal dos coros de Baco dado pela flauta recurva, correis para os manjares e as taças que enchem a mesa. Eis o vosso amor, eis os vossos gostos, felizes, contanto que o aruspício favorável anuncie o sacrifício, e que uma gorda vítima vos chame ao fundo dos bosques sagrados."

VIRGÍLIO, in "A Eneida", pg.205 3ª edição, Europa-América


Pois é de Camilla que se trata, a aguerrida mulher de quem fala
 o tirreno Tárcon,
 jovem e bela, itálica, rainha dos Volscos, no combate aos enéades
Mas também cruel e um tanto irresponsável ao lidar com os inimigos.
Teve um triste fim, já fadado desde o seu nascimento.
  



Excerto da "Eneida", a última obra de Virgílio, que nunca a deu por terminada. Perfeccionista, ainda procurava no fim da vida, em 19 a.C., a palavra justa para cada verso, ao ponto de ter pedido aos amigos para queimarem o manuscrito.

Virgílio é para os latinos o que Homero é para os gregos e a Eneida é um clássico, na verdadeira acepção da palavra: tornou-se paradigma poético, e foi nela que tantos grandes poetas se olharam - entre eles, Luís Vaz de Camões e mais notavelmente na Divina Comédia de Dante, em que Virgílio aparece como guia de Dante pelo inferno e purgatório.

Em Junho último, apareceu uma nova tradução da "Eneida", desta feita por Carlos Ascenso André, em verso, no sentido de manter a proximidade ao original e permitir compará-la com o texto virgiliano.

Esta tradução é a primeira feita em verso livre por um especialista em Literatura Latina e, também, poeta; nesse sentido, segue-se à de Agostinho da Silva e à que foi feita por professores da Faculdade de Letras de Lisboa, mas em prosa. aqui

==

Daqui vos saúdo, meus amigos.
Desejo-vos dias luminosos.
E boas leituras. 

======

Veja aqui "Camila, a virgem guerreira", João Manuel Nunes Torrão, Universidade de Coimbra
Imagem daqui ; Ver: Nova tradução da Eneida - a grande epopeia de Virgílio - aqui
Carlos Ascenso André - entrevista


38 comentários:

  1. Linda leitura nos proporcionaste aqui! Ótimo dia! bjs, chica

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Grata, Chica, pela sua presença e amável
      comentário.

      Bj

      Olinda

      Eliminar
  2. Consta que está uma bela tradução.
    Conheço o seu autor que mora em Ourém.

    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Tem razão, Rosa dos Ventos, a tradução e o seu
      Autor têm tido merecidos encómios.

      Abraço

      Eliminar
  3. Gostei muito de ler. Grato pela partilha.
    .
    Saudação poética

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada, RyK@rdo pela visita e comentário.

      Abraço

      Eliminar
  4. Uma publicação belíssima!! :))
    -
    Entreguei um sonho à lua
    -
    Beijos e um excelente dia:)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada, Cidália, pelo simpático comentário.
      Beijo

      Eliminar
  5. Olinda, confesso não ter lido "Eneida", mas apenas alguns textos usados como referência por outros escritores. Camões me foi apresentado na escola. Virgílio, não. Gostei muito de sua esclarecedora postagem, pois me trouxe informações desconhecidas. Bjs.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É mesmo, Marilene. "Eneida" tem servido de espelho a muitos autores, talvez por ser comummente considerada a História, por excelência, do ocidente - a de construção e queda de impérios.
      Por sinal, deparamo-nos na actualidade com alguns pseudocriadores de grandes espaços mentais e não só, com pretensão a senhores do mundo...

      Grata pelo comentário, minha amiga.

      Beijos

      Eliminar
  6. Um livro que já li! Muito grata por esta excelente partilha!
    Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá, Fanny
      Obra que vem do passado e que, no entanto, se imbrica no presente, não é verdade?
      Nas devidas proporções, claro, e mitologia à parte :)
      Muito obrigada pela visita e comentário.
      Beijinhos

      Eliminar
  7. Eneida foi das Obras que a minha juventude me presenteou. E como sonhava!
    Muito grato e feliz por trazeres a lembrança ás vivências actuais.


    Beijo
    SOL

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá, Sol da Esteva

      Realmente, os clássicos eram estudados com afinco e interesse.
      Realizavam-se, inclusivamente, grandes sabatinas para consolidação
      das matérias.
      Penso que temos ainda muito a aprender com a visão dos grandes mestres do passado.

      Grata eu, amigo, pela visita e comentário.

      Abraço
      Olinda

      Eliminar
  8. Otimo post. Votos de um bom fim de semana. Bjinho

    ResponderEliminar
  9. Querida Olinda
    Que bom recordar Eneida e tudo o que ela me traz à lembrança - juventude!!!
    Eu sempre fui e continuo sendo apaixonada por mitologia.
    Nos meus tempos de estudante adorava e sabia "de cor e salteado" as histórias, amores e desamores de todas as deusas e deuses, gregas, romanas e até egípcias! Entretanto... algumas coisas foram ficando pelo caminho 😉

    RE - Tenho que te dizer: gosto imenso dos teus comentários na minha "CASA". Focas todos os pontos, até aqueles que quero que passem despercebidos 😂😂😂
    Pois... o Alessandro. Poderia desaparecer sem deixar rasto? Bom... rasto ele deixou, o filho Miguel. Ainda há alguns segredos que até agora não foram revelados... A seu tempo o serão.
    De qualquer modo estou com vontade de pôr um fim à história. Parece-me que já vai demasiado longa...

    Bom Fim-de-semana
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

    ResponderEliminar
    Respostas


    1. Querida Mariazita

      A Mitologia tem o encanto dum mundo pleno de seres com poderes que, nós humanos, admiramos e gostaríamos de possuir. :)
      Talvez daí a atracção que sempre exerceu sobre nós.
      Conhecer os deuses e as deusas e as suas histórias preenche deveras o nosso imaginário.

      ==

      Minha amiga, ler os capítulos do teu romance em construção é um prazer. Desculpa se te pressiono um pouco. Eu sei que Alessandro deixou um rasto indisfarçavel, o filho Miguel...
      Mas não me conformo que ele tenha ido para a Itália, assim, sem mais nem menos. :))

      Saúde e boa escrita!

      Beijinhos

      Eliminar
  10. A escrita dos clássicos é imortal porque a natureza humana está sempre actual. Por isso é bom lê-los e relê-los.
    Proteja-se bem, minha Amiga Olinda.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bem visto, querida Graça.
      A natureza humana com as suas fragilidades e momentos de superação, ontem e hoje com a mesma idiossincrasia.
      O Mito, e com ele os deuses, criação nossa para a explicar o inexplicável.

      Grata pelo comentário, minha amiga.

      Beijinhos
      Olinda

      Eliminar
  11. que fim triste, de facto, minha amiga - a morte da fogosa Camila!
    antes a morte, evocando Vénus, nos braços do "guerreiro adornado de vestes
    esplendentes e de armas magníficas... "

    mas, não! . os deuses são cruéis - a morte vem de uma "flechada" ressabiada do tirreno Tárcon, que não se sabe o que mais inveja - se os feitos heroicos de Camila, se o brilho do jovem de "de armas magníficas" que Camila "nunca mais perde de vista!"...

    enfim, os deuses e os mitos a anteciparem o tempo histórico ...

    gostei deveras, Olinda.
    abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Concordo, Manuel Veiga.
      Profundamente ressabiado o tirreno Tárcon, como se vê pelo texto, pelas investidas de Camila no seu terreno, o mundo dos homens. E também uma certa frustração de que a Eneida é pródiga. Basta ver como Eneias logo no início da epopeia se apresenta choroso, inconsolável. É certo que depois se recupera mas a sua missão está votada ao fracasso... não será ele o fundador de Roma.

      Mas é de Camila que falamos, a bela, a indomável. Só um dardo poderia detê-la e esse estava-lhe destinado desde o princípio dos tempos. Nem Cloreu, o jovem de "vestes esplendentes" ou de "armas magníficas", nem o tirreno Tárcon, invejoso, têm poder sobre ela. Os deuses providenciarão para que o seu destino se cumpra.

      E lá está, o mito e os deuses compassando para que técnicas científicas nos colocasse na senda da interpretação dos vários tempos. O tempo de agora, o nosso, não se deslaça do de então. Vivemos numa cadeia de acontecimentos que nos prende uns aos outros ainda que pensemos o contrário.

      Excelente comentário o seu, meu amigo. Grata.

      Um abraço.

      Eliminar
  12. Boa noite de Domingo, querida amiga Olinda!
    Seus posts são muito esperados, pois trazem cultura geral e uma boa dose de acolhimento sincero que nos anima a vir aqui.
    Gostava da mitologia, nas não me debrucei com afinco. Gosto de tudo que leio sobre a matéria.
    Na realidade, uma mulher ainda desativa alguns homens pouco maduros.
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querida Rosélia

      A sua visita e comentário são sempre esperados
      pela generosidade e amizade que me traz,
      prestigiando o "Xaile de Seda".
      A mitologia oferece-nos um mundo de grandes
      feitos e vemos que na "Eneida" o autor, num
      golpe de asa interessante, procura colocar
      as mulheres num lugar de relevo.

      Boa quarta-feira, minha amiga.

      Beijos.

      Eliminar
  13. É sempre ousada e aliciante uma incursão pela mitologia e autores clássicos. Mas ousadia não falta ao Xaile de seda.
    Surpreende-me a humanidade dos deuses, e assim a guerra, o bem e o mal semeado na terra, também lhes diz respeito.

    Beijo, querida Olinda.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querida Teresa

      Tão lindo o que me diz. Fiquei sensibilizada com a palavra
      que empregou: Ousadia! E vou aproveitá-la, em relação à postura das mulheres da "Eneida".

      É a ousadia que as anima, realmente. Sobrevivem num mundo de heróis que desafia os deuses e até estes se veem aflitos para controlá-los. E surgem mulheres como Dido, a rainha de Cartago, Amata que reivindica as suas próprias decisões, Camila a mulher guerreira... Todas elas contrariando a hegemonia masculina. São heroínas que marcam a história, cujo fim não é a glória mas a morte.

      Do mesmo modo a audácia em Virgílio soçobra. Faltou-lhe a coragem necessária para enfrentar o estado das coisas.

      Assim agora, em muitos quadrantes, a situação das Mulheres.

      Minha amiga, continuação de boa semana.

      Beijo.

      Eliminar
  14. É um blogue de escolhas perfeitas... um local de palavras e paz. . Deixo um olá de saudade.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá, Sam

      Gentis as suas palavras. Grata.
      Aguardamos o seu regresso. Esperamos
      que em breve. :)

      Abraço.

      Eliminar
  15. U 'post' muito bem fundamentado e estruturado, como estudante de Ciências,
    apenas conheço a Eneida como inspiradora dos Lusíadas.
    Gostei de ler, querida amiga.
    Tudo pelo melhor.
    Beijinhos
    ~~~~~

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá, Majo

      Muito obrigada pela sua opinião sobre
      este post.
      Desejo-lhe Saúde e dias felizes.
      Beijo

      Eliminar
  16. Uma incursão pela mitologia grega ou latina entrelaça-se com o percurso das respectivas línguas que tivemos que fazer . A atenção que tanto o grego como o latim- sobretudo este último- nos obrigava , descompensava o olhar mais completo ,de numa narrativa que exigia maior contemplação para um olhar mais profundo destas mitologias e seus enredos .
    Hoje , esta virgem guerreira será porventura uma Camila dos nossos tempos .
    Por isso , obrigada por esta explanação de sabedoria Olinda, além de lembrar a nova tradução .
    Muitos parabéns ! Mesmo🙏
    Beijinho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Credo, Manuela! Explanação de sabedoria? Não tomemos a nuvem por Juno. :))) Este é apenas um tema como tantos outros, aqui no Xaile, em que cada um dirá o que se lhe oferecer de conformidade com a sua sensibilidade e forma de ver as coisas. Eu, inclusivamente, e tal como fez a minha amiga, o que muito agradeço.

      E é sempre um prazer a sua visita.

      Beijinhos

      Eliminar
  17. Não sabia desta tradução em verso.
    A obra dispensa comentários. Mas o teu post é muito bom.
    Continuação de boa semana, querida amiga Olinda.
    Beijo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigada, amigo Jaime, pela visita
      e comentário.
      Saúde.
      Abraço.

      Eliminar
  18. É sempre bom recordar e recorrer aos clássicos, que estão, afinal, sempre presentes e continuam a ser importantes influenciadores.
    Abraço.
    Juvenal Nunes

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá, Juvenal

      Grata pelas suas palavras em relação a este tema.

      Abraço.

      Eliminar
  19. Mas que aula maravilhosa você
    nos dá, querida Olinda.
    Adorei o que me mostrou.
    Um beijo, amiga.

    ResponderEliminar
  20. Aula nada, Silvio Afonso.
    Apenas uma prazerosa troca de ideias,
    com quem me prestigia vindo aqui :)
    como o meu amigo.

    Grata pela sua visita.
    Abraço.

    ResponderEliminar