I
Eis-me perto da Fonte, muito perto.
Vejo brotar a água,
Uma água clara e límpida,
Boa, amável!
Eis a Fonte:
Fica perto de Badiopor.
Junto dela nasci:
Eis a Fonte da minha infância.
Sim, eu amo essa Fonte,
Admiro-a,
Brinco,
Eu e meus irmãos, à sua beira.
Fica, fica perto de Badiopor,
Desse lugar quase sagrado,
Desse lugar ensombrado;
Badiopor, fonte de nossas almas.
A sua água nos atrai,
E acarinha-nos.
Vemo-la noite e dia;
E a Fonte que está mais perto.
Olha: a água a brotar da nascente,
Como de fonte,
Como um regato!
(Sim, parece-se mais com um regato.)
II
Mais pequena ainda que a Fonte,
É a nascente onde tudo vem beber.
A nascente, nossos pais, amamo-la.
Nossa.
A nascente é fonte das árvores e das folhas.
Olhamos a nascente, o ribeiro,
Manancial de nossos pais.
É verdade:
Esta Fonte é mui antiga,
Nascente da Tradição,
Fonte da Historia; eis
O manancial do Reino,
Tão perto de Badiopor!
Bem me lembro:
Há muito que ela se conserva no mesmo lugar,
Manando água cristalina.
Eis, eis a Fonte do Reino.
Ela protege-nos,
Ela é a alma das crianças;
Fonte do Reino, força nossa,
Ela é a nossa protectora.
As chaves do Reino onde estão?
Nessa Fonte,
Onde meus irmãos e eu vemos às vezes monstros
E trememos então de medo,
Ou choramos.
(Nós, filhos do Reino,
Nos, príncipes desse seu Reino.)
III
É verdade, como príncipes,
De tudo cantamos,
Nos, príncipes de Baboque
Bem amados,
Pelo sangue
Oriundos daquele Rei,
Daquele que é Rei dos Reis;
Nos que vimos do seu Reino,
De todos o mais poderoso e vasto,
Como o Reino de Baçarel.
(E Baçarel é um grande Reino,
Onde príncipes vêm a luz;
Baçarel, terra bem nobre,
Seu lugar de nascimento.)
(Publicado: in Poesia & ficção, 1972)
Publicar ou não o poema na íntegra? Como vêem, optei por publicá-lo na totalidade. Se o não fizesse não conseguiríamos ver tudo o que autor pretende dizer, tanto no seu regresso às raízes como na importância que a sua cultura concede à parte telúrica da vida. Além do mais, este poeta insere-se na fase denominada de "Poesia de Combate", de 1945 a 1970, que referi num post mais atrás. Uma forma de combater: lembrando o quanto perdemos quando se esquecem os valores que enformam as nossas tradições mais caras, e das quais depende a sobrevivência de um povo.
Nota biográfica:
António Baticã Ferreira nasceu em Canchungo, em 1939. Filho de um soba (chefe de tribo em África, também denominado régulo), estudou em vários países, formando-se em medicina e tendo exercido a profissão no Hospital Santa Maria, em Lisboa. Não publicou nenhum livro, mas, segundo a sua família, tem muitos poemas inéditos. Os “Cadernos da Sociedade de Língua Portuguesa - Poesia e ficção I”, de 1972, pp. 15-21, publicaram sete poemas seus, seis deles reproduzidos em “No reino de Caliban” (1989) e também já tinha aparecido em “Poilão - Caderno de Poesias” (1973). Segundo Secco (1999: 214), «por ter vivido fora da Guiné, passa em seus versos a angústia do exílio. Canta a saudade da infância na Guiné e o mar, ...., apesar de pouco recorrente» (Couto e Embaló, 2010:108). aqui
====
Daqui vos saúdo, regressando à actividade do blog na companhia de mais um poeta guineense.
Mas voltarei com outros apontamentos.
Bom domingo.
Abraços.
====
Poema: in No Reino do Caliban, Manuel Ferreira - pg 324/325
Nota: Quando me refiro à Literatura guineense, leia-se p.f., Literatura da Guiné Bissau.
Nota: Quando me refiro à Literatura guineense, leia-se p.f., Literatura da Guiné Bissau.
Gostei imensamente desse poema! Bom retorno e com gabarito,trazendo esse poema! Lindo! bjs, chica
ResponderEliminarBoa noite de alegria, querida amiga Olinda!
ResponderEliminarQue beleza refrescante nos presenteou!
Adorei as características apresentadas do povo nativo e destaco a humildade... Por isso são tão felizes.
Ritmo do vídeo muito bom. Animado e singelo como gosto...
"Ela protege-nos,
Ela é a alma das crianças;
Fonte do Reino, força nossa,
Ela é a nossa protectora."
Dentre tanta beleza poética, recortei esta estrofe...
Muito boa postagem mais uma vez, amiga.
Estava com saudade.
Tenha dias muito felizes e abençoados!
Bjm carinhoso e fraterno
Este poeta guineense, António Baticã Ferreira, tem uma poética muito bela e delicada. A nascente, a fonte, a sede são palavras que os poetas nunca esquecem porque os poemas sem elas podem secar…
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.
"É a nascente onde tudo vem beber" - a fonte! onde tudo começa...
ResponderEliminare nesse banho matricial a mágica inscrição do nome - como inscrição de fogo!
e o indelével perfil dos passos, ainda espera.
um momento de rara beleza e emoção estética.
gostei muito. muito mesmo, Olinda
abraço, amiga
A Fonte... As raízes, querida Olinda! Sempre estamos à volta...
ResponderEliminarGostei de me dares a conhecer o médico poeta António Baticã Ferreira!
Um beijo, querida, uma boa semana!
Comecei a ler e fiquei logo apanhada. A poesia tem caminhos que nos encostam às estrelas e estes são de nascente, de pureza, de raiz. É cheia de saber esta fONTE DO REINO onde a cultura de um povo mata a seda.
ResponderEliminarBeijos, minha amiga Olinda.
Querida Olinda
ResponderEliminarFiquei comovida por ter sentido o meu poema "Tengo um namoro sabido de to l mundo", mesmo sem tradução. Há quem defenda que o mirandês terá um maior desenvolvimento se não for traduzido. Talvez seja um desafio maior.
Terno abraço.
Tanto lá, como eram por cá, as fontes são lugares
ResponderEliminarde grande convívio e socialização, especialmente
no fim do dia...
Gostei muito de ler, querida Olinda.
O vídeo tem sons tocantes que me calam fundo...
Venham mais!
Beijinhos
~~~~~
Ps - tenho andado com a minha atividade reduzida
devido a problema ocular.
~~~~~~~