sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Yaka

Vilonda, dali da rocha azul, contempla agradado o campo cultivado e os bois a pastarem. Construiu a sua onganda na terra dos mundombes e vive ali com a família. Sabia que a cada povo pertence o seu território. Mas, atreveu-se a deixar as terras secas e escarpadas dos seus antepassados e tentar a sorte nas terras dos mundombes. E teve sorte. Eles não se importaram, ao ponto de lhe fazerem uma visita amigável. E ali, Tyenda chegou à idade de ser circuncidado, esteve um mês em retiro. Seguindo a tradição, Vilonda mandou-o em visita ao seu povo. Depois casá-lo-ia com a filha de Ngonda, amigo que veio morar perto dele, também construindo a sua onganda na terra dos mundombes, e pondo os seus bois a pastarem nos campos verdes.

Alexandre olha para ela - Yaka. Mesmo agora sente-se impotente na interpretação da sua figura: tantos anos sem tentar compreender a mensagem... uma mensagem que vinha das profundezas da sua história? Vinha do sítio onde fora talhada e pintada? Ao sapalalo chegam notícias de revolta dos mucubais. E recomeça o grande medo, pensa para os seus botões. Chegam-lhe farrapos antigos da lembrança dos quintalões...barulhos metálicos de correntes...grilhetas tangidas...sons cavos e ameaçadores colados às folhas das acácias...sim, a ameaça dos quintalões chega do passado.

E do lado dos mucubais, os Cuvale ? (designação que eles preferem)



Esbaforido, Tyenda chega a gritar: Ai pai, ai pai, o que está a passar na terra dos teus antepassados...estão a matar gente, os brancos estão a matar gente. Todos, todos... Os velhos dizem que eles vão-nos fazer mal em toda a parte. Querem matar todos os Cuvale, querem apanhar todos os bois. É, parece não haver escapatória: a maior parte dos Cuvale está refugiada na Serra da Neve... e lá também estava o oma-kisir, grande pássaro comedor de gente... Vilonda num ápice percebe tudo, aliás, a namulilo começou um comportamento estranho, mugidos, a forçar a vedação, transmitindo o nervosismo ao resto da manada. E a namulilo fez o que a mulher de Vilonda temia. Evitou o dono, pôs-se a correr, parou em frente da cubata onde Vilonda dorme meteu a cabeça lá dentro e lá ficou parada... Mau presságio. Tudo parou estarrecido, bois, gentes; pássaros e matrindintes se calaram; o vento já não agitava as folhas das palmeiras-leque... Momento fatídico. De repente quebrou-se o encantamento, a namulilo voltou para o curral e os bois não reagiram. A primeira mulher de Vilonda olha para ele, envelheceu de repente: as barbas do queixo mais brancas, o peito musculoso arqueado. E ele falou com voz cansada de velho: 

Vai haver morte na onganda.

A namulilo, a vaca sagrada, não se enganava...

E Alexandre sabia. Conhecia os Cuvale. Eles, sem os seus bois preferiam mesmo morrer. O oma-kisir, o grande pássaro comedor de gente, veio e desapareceram as duas famílias, as suas ongandas. E os bois levados.

Ele sabia:

Haka! os olhos dos cuvale sem os bois! E o coração deles, então! 

Começava a compreender a mensagem que YAKA queria transmitir-lhe desde que o seu primeiro vagido estalou em terra cuvale, debaixo da mulemba.





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Apontamento meu sobre os Cuvale (Kuvale), povo do Sul de Angola - baseado nas páginas 13, 150, 162, 165, 172, 174, 176, de YAKA. Em outros momentos, aqui no Xaile, falei desse povo peculiar, orgulhoso da sua cultura e dos seus costumes e que corre o risco de extinção.

Yaka - Pepetela
Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, conhecido pelo pseudónimo de Pepetela (Benguela29 de Outubro de 1941),  escritor angolano.

Resumo de Yaka. aqui
...através da articulação entre literatura e história, o romancista entrelaça a história individual da família Semedo com a história do desenvolvimento político e social de Angola, num período que começa em 1890 e se estende até 1975.  Por meio de uma representação literária típica do romance histórico tradicional, o autor recupera a singularidade histórica de uma época atravessada por diversas crises históricas e políticas provocadas por fatores de ordem econômica e pelos constantes conflitos entre colonos portugueses e nativos angolanos. Através do uso da saga familiar como estratégia narrativa, Pepetela realiza uma análise da sociedade colonial e faz uma releitura da história do país, dando voz a tudo aquilo que foi silenciado e obscurecido pela historiografia oficial portuguesa.

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Veja aqui
Tribos do deserto do Namibe, - cuvale, chimbas e himbas

10 comentários:

  1. Que delícia de leitura nos proporcionaste aqui!Adorei aprender, saber desse tema! Valeu! Lindo fds! bjs, chica

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  2. Muito ilustrativo, querida Olinda...com o cuidado de sempre!
    Como eu aprecio Pepetela!

    Beijinho

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  3. Pepetela, uns dos "pais fundadores" da Pátria angolana, ao lado, de Agostinho Neto (médico e poeta) e tantos outros e um vulto maior da fecunda Literatura de Angola.

    bom seria que as sementes lançadas por este espaço de cultura e de amor pela Língua Portuguesa, pudessem frutificar como expressão de uma política consequente de estímulo e promoção da multifacetada literatura angolana e dos restantes países da CPLP.

    gostei muito, Olinda. que nunca as mãos lhe doam

    abraço

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  4. Li o texto com o maior deleite, foi realmente um prazer...
    Conheço Lobito e Benguela... Ao tempo que não ouço falar destas etnias...
    A única palavra angolana que conheci foi Haka e achei muito interessante a grafia que lhe deram. Também é usada pelos Kimbundus (25%) Não há exclamação que a dispense.
    A cultura do presságio e feiticismo é muito difícil de entender pelos europeus...
    A luta começou no Norte e os agricultores do sul também serviram para a retaliação... páginas tristes da história, fatos recentes que abriram feridas que ainda sangram...
    Terno abraço, querida Amiga.
    ~~~

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  5. Boa noite de paz, querida amiga Olinda!
    Vou começar pela flor. Que lindeza, amiga! O deserto produz o belo igualmente, basta procurar por todos cantos. Em tudo o que há na Terra podemos ver alguma beleza por mínima que seja e que só nos faça ajoelharmos diante do espetáculo como aqui postou a amiga.
    A história eu não conhecia. Fico pensando de que, como naquela época, também hoje, muitas vezes, desconhecemos nossa própria história e me indago se isso é justo? Vejo que não, sejam elas até adornadas com fábulas, em algumas vezes, toda história e cultura deve ser respeitada.
    Gosto da variedade das suas postagens, amiga.
    Muito obrigada por partilhá-la.
    Tenha uma noite abençoada!
    Bjm carinhosa e fraterno de paz e bem

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  6. Bom dia, querida Olinda!
    Passei para agradecer a mensagem deixada no Rol e deparei-me com esta encantadora publicação.
    Sem razão alguma nunca li Pepetela. Talvez seja desta vez que abro um dos livros que aqui tenho.
    Obrigada amiga por compartilhares histórias da História.
    Beijo, bom fim-de-semana.

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  7. Um verdadeiro Tratado. Discorrer sobre gentes, lugares e Povos é um Bem para Portugueses (como para Angolanos). Explicadinho (como bem fazes e sabes) torna tudo mais fácil e agradável.
    A Literatura de Angola deveria ser mais divulgada entre nós.
    Parabéns, Amiga.



    Beijo
    SOL

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  8. O texto revela o modo de viver de um povo, seus medos, suas crendices e sua miséria. É o desenvolvimento político e social de Angola que o famoso Pepetela analisa. Quanta arte!

    Beijos, querida Olinda.

    Beijo, mun

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  9. Bom dia...
    Hoje, de uma forma mais rápida, de maneira a chegar a todos. Espero a compreensão de todos. Cheguei com:- Entregas-me uma rosa num ávido beijo. {Poetizando e Encantando}

    Bjos
    Votos de uma óptima Segunda-Feira.

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  10. Ao ler o texto, fiquei com imensa vontade de ler este livro de Pepetela. Obrigada, minha Amiga Olinda por nos trazer escritores tão fantásticos.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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