segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Teu drama





O drama que roubou o brilho ao teu olhar,
  Que te pôs fundas rugas sobre o rosto
  E pintou-te de branco o cabelo,
  Ninguém o viu nem ouviu.

  Foi um drama distante,
  -Um drama longe do mundo.
  No fundo, bem no fundo de ti mesmo-
  Feito de ódios, de vinganças,
  De traições e injustiças,
  De incertezas, de ilusões e de esperanças perdidas.

  Tudo foi muito longe, mas à luz do dia,
  Quando se ouvia a algazarra viva das crianças,
  Com lojas e praças cheias de apressados compradores...
  Quando um frémito de vida
  Empurrava toda a gente.

  Foi um drama à luz do dia,
  Sem gritos, sem alarme,
  Sem notícia nos jornais.

  Ah! o teu drama foi um drama distante
  Que arrastaste durante anos
  Pelas ruas, pelas lojas,
  Pelas mesas dos cafés.

  Dentro de ti centenas de barcos afundaram-se
  Com o carregamento completo
  De todos os portos de escala
  Da tua preciosa vida.
  Pedaços de horas e dias,
  Farrapos de esperanças,
  Ficaram boiando, inúteis,
  À flor das águas salgadas da tua existência.

  Nem gritos de terror,
  Nem pedidos de socorro...
  Nem tábuas de salvação
  Ou a esperança de uma costa.

  Foi um drama distante e brutal,
  Enorme e incompreensível
  Como as coisas desconhecidas.

  Nem gritos de terror...
  Nem tábuas de salvação...
  Nem uma mão piedosa
  Para acender uma vela
  Na noite escura da tua agonia.

   Aguinaldo Fonseca
      (1922-2014)

(Linha do Horizonte, 1951) 

in: No Reino do Caliban, pgs:163/164

***

'Linha do Horizonte', é o único livro de poemas do autor, publicado em 1951.
Apesar da força da sua poesia, estranhamente, um longo silêncio, que perdurava até hoje, se abateu sobre Aguinaldo Fonseca, desaparecendo praticamente de circulação. Questionado por Laban (investigador da cultura lusófona) se deixara de acreditar no poder da poesia, ele respondeu: “para mim, poesia é vida” mas que já não sentia a necessidade de publicar. aqui
  
***

Pintura de Nelson Neves,
Cabo Verde  

4 comentários:

  1. Belo

    na complexidade do simples

    Bj

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  2. Não conhecia.....Vou procurar saber mais sobre o 'senhor'..
    Abraço

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  3. Obrigada pela partilha deste belo poema que não conhecia.
    Um abraço e uma boa semana

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  4. Quantas histórias contadas nas rugas, olhos, bocas e dores, a partir de uma promessa incumprida...

    Beijos!

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