segunda-feira, 21 de maio de 2012

Momentos de Aqui


Estupefacto, quase rejuvenescido, o Padre olhava agora o Mar por detrás da enorme janela do farol. Sem palavras, porque não as havia naquele momento, limitou-se a levantar as mãos até embater no vidro, como se fosse tocar, agarrar, consumir o Mar. Olhou então para trás e viu Mortinho sorrindo, como se compreendesse perfeitamente aquela sensação. Deixou-se estar assim uns minutos e depois acordou:
̶  Mortinho, a sua mãe pediu-me que viesse falar consigo.
̶  Sim, eu sei, Padre.
̶  Sabe? Como?
̶  Provavelmente está preocupada porque já não vou à Aldeia…
̶  Pois, é mais ou menos isso – disse o Padre, que ouvindo as últimas palavras de Mortinho, não conseguiu encontrar nada de estranho naquela situação.
̶  É simples, Padre. Estou cá há dez meses e tinha pouco o que fazer, por isso ainda ia à Aldeia. Mas recebi no mês passado uma boa remessa de livros que tinha requisitado. Não há filmes bons na Aldeia e tenho aqui tudo o que preciso…
̶  Tudo, meu filho?
̶  Acha que não, Padre? – perguntou Adelaide Mortinho apontando para a sala, terminando na janela inundada de Mar. – Acha que isto não é tudo?
O Padre deu então outro olhar à sala. Na sua aparente desarrumação reinava uma certa ordem. De um lado, o monte de livros. Ao centro, a secretária com botões intermináveis e luzes incompreensíveis. Do outro lado, fitas de música e mais livros. E em redor do cilindro gigante que era aquele farol, uma janela, uma varanda e o respectivo Mar. Como que compreendendo o olhar do Padre, Adelaide Mortinho, o faroleiro, dirigiu-se lentamente para uma das portas laterais que davam para a varanda. «Venha, Padre.» Uma brisa fresca entrou pela sala, mas não se interessando por nada, voltou a sair. Com ela foram para a varanda o faroleiro e o Padre. Do alto do farol parecia dominar-se o Mar. Ou simplesmente, poder-se calcular e sentir o seu poder, a sua imensidão. Diante da beleza, da brisa, e levado pelas sensações que só o Mar sabe provocar, o Padre exclamou comovido:
̶  Isto pode ser tudo!
Adelaide Mortinho ouvia o Padre mas continuava a olhar o Mar. Era um olhar diferente do do Padre: olhar fraterno mas respeitador. Tinha o seu quê de companheirismo e de servidão ao mesmo tempo.
̶  Compreende, Padre, que eu não precise de ir à Aldeia?

Momentos de Aqui 
Ondjaki
Excerto do conto 'O Padre, o Mar e o faroleiro'
Retirado de 










Imagens:Internet


29 comentários:

  1. Lindo texto Olinda!!
    O tudo de cada um pode ser só a paz que o mar, o céu e o ar traz...

    Beijos e boa semana!!

    Obrigada!
    :D

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    1. E já é tanto, não é?

      Um boa semana também para si, minha amiga.

      Beij

      Olinda

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  2. Venho desejar uma abençoada semana,
    também pedir sua presença no meu blog para
    nos unir em oração.
    Na postagem esta tudo explicado.
    Desde já Deus abençoe e seja bem vindo juntando -se
    a nos.
    Beijos no coração.
    Evanir.

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    1. Querida Evanir

      Já fui ao seu blog e desejo que o marido da Luconi esteja melhor.

      Obrigada por me ter chamado.

      Beijos e boa semana.

      Olinda

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  3. Minha querida amiga Olinda
    Pela amostra... o livro deve ser muito interessante.
    Não me surpreende a atitude do faroleiro. Ao contrário, entendo-o muito bem. Ele não precisava de nada mais para se sentir feliz.
    Boa escolha.

    Feliz semana. Beijinhos

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    1. Minha amiga Mariazinha

      Muitas vezes procuramos, procuramos e afinal a felicidade está mesmo ao nosso alcance, bastando para isso olhar com olhos de ver o que nos rodeia.

      :)

      Uma boa semana também para ti.

      Beijinhos

      Olinda

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  4. Querida Olinda, chego aqui, numa noite de segunda-feira,recuo um pouco nos dias e encontro Dom Casmurro, meu velho conhecido. Depois leio um belo e comovente poema, seguido de Bongo, cujo vídeo estou levando:bela música, numa letra de realismo. Finalmente, venho para o Farol e me encanto o personagem Mortinho.
    Vou dormir feliz, após me deliciar com as suas 3 últimas postagens. Todas excelentes.

    Produtiva semana.
    Beijinhos,
    da lúcia

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    1. Minha querida Lúcia


      Fiquei encantada com o seu périplo pelos meus posts. Por estes dias esteve a decorrer aqui no Xaile uma 'Semana da Lusofonia', com uma selecção de autores, poemas, lendas e excertos, bastante subjectiva... a bem dizer, a dificuldade esteve na escolha.

      Ainda bem que gostou do que leu. :)

      Beijinhos

      Olinda

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  5. Minha querida

    Deve ser um livro muito interessante, por esta amostra que adorei ler.

    Deixo um beijinho com carinho
    Sonhadora

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    1. Olá, Sonhadora

      Muito obrigada pela sua visita.

      Bj

      Olinda

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  6. Olá, como está?

    Obrigado pelo seu comentário no meu Extraterrestres!

    Bjssss

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    1. Olá, Vieira Calado

      Sempre interessantes os excertos que nos oferece. :)

      Abraço

      Olinda

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  7. Olinda querida:
    Já Guerra Junqueiro, acaba "O Melro", assim: "Ó Natureza! a única Bíblia verdadeira, és tu!".
    O Faroleiro, sabia isso.
    Amei a história. Tão simples, tão verdadeira!
    Beijinho
    Maria

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    1. Querida amiga Maria

      Lindo ter-nos recordado aqui Guerra Junqueiro e o seu soberbo poema 'O Melro', que transporta uma grande
      lição.
      Somos parte integrante da Natureza mas, mesmo assim, nem sempre atentamos nos grandes ensinamentos que ela nos transmite.

      Beijinhos

      Olinda

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  8. O faroleiro tinha toda a razão, em optar por não saír do paraíso farolástico.
    Tinha tudo o que era essencial; abrigo, mar, luz, literatura e música...
    E o rapaz escreve e descreve, com imenso realismo.
    Envio-te os meus cumprimentos, Amiga Olinda.

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    1. 'Paraíso farolástico'...o que eu aprendo contigo, meu amigo Bartolomeu! Por falares em paraíso, lembrei-me...Conheci um faroleiro que vivia,isolado, no seu ilhéu rodeado pela natureza e na companhia dos seus sonhos. Sonhava estudar e fê-lo com sucesso.Sonhava poder ajudar a mãe e os irmãos (9) e conseguiu-o.Sonhava constituir família, idem. Com os seus dons naturais e adquiridos veio a ser uma figura grada no meio. 'Mas há algo que eu nunca consegui alcançar e que talvez fosse o suficiente para ser feliz'- disse-me ele.Vi perpassar, nos seus olhos verdes brilhantes de lágrimas, lampejos de um paraíso desejado e nunca alcançado... o seu Shangri-la.

      Abraço

      Olinda

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  9. Belo texto para reflexão, Olinda! Conheço e acho que todos conhecem pessoas que pouco têm, mas que se sentem felizes e agradecem à vida aquilo que têm. Pode crer que bendigo o momento em que encontro pessoas dessas. São pessoas abençoadas que nos dão verdadeiras lições de vida e que nos deixam a refletir. Fazem jus àquilo que li algures: " para se ser feliz basta ter o suficiente". Par quê ter demais? Para quê correr e correr para se ter cada vez mais? Não se vive assim! Viver é isso...é apreciar com tempo as coisas belas e darmos graças à vida por termos o suficiente. O tudo pode não ser o bastante e o suficiente deveria ser o bastante para que nos sentissemos bem e gratos por ele. Um beijinho, amiga e obrigada por mais esta reflexão que todos devemos fazer. Fica bem!
    Emília

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    1. Querida Emília

      Este teu comentário, focando aspectos tão importantes da vida já constitui matéria para nos determos e reflectirmos sobre a efemeridade da vida. O quanto corremos atrás de coisas voláteis, que acabam por não nos servir para nada. A acumulação de bens materiais, como bem apontas, não se justifica como não se justificam as correrias em vários sectores da nossa vida que, muitas vezes, só servem para lisonjear a nossa vaidade.

      Retenho aqui, com muito prazer, esta tua frase:

      'Viver é isso...é apreciar com tempo as coisas belas e darmos graças à vida por termos o suficiente'.

      Muito obrigada.

      Beijos

      Olinda

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  10. pode ser tudo
    o mar...
    que enrola-nos
    que nos embala
    e no farol... avistamos a linha do horizonte...

    azimutes...

    abrazo serrano

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    1. Caro mixtu

      Gostei muito desta tua abordagem poética, muito linda! Quase sem dar por isso comecei a cantarolar,
      :)

      'O mar enrola na areia
      ninguém sabe o que ele diz
      bate na areia e desmaia
      porque se sente feliz'
      (...)

      Um farol, um ponto privilegiado para traçarmos as nossas coordenadas e encontrarmos o nosso 'norte'...

      Abraço,
      aqui da planície

      Olinda

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  11. Amiga Olinda, pelo que termino de ler, a obra deve estar muito mais interessante, e aguça a curiosodade de quem somente leu este tracho.
    O mar, é algo que assusta, é mistério, é gerador de vida.
    Um abraço fraterno e um beijo grande.

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    1. Caro Antônio

      O mar é aquela entidade sobre a qual há sempre muito a dizer e, geralmente, fica muitíssimo por dizer, dada a sua riqueza e imensidão, não é? E também porque é gerador de vida, desde a noite dos tempos e uma figura constante nas nossas vidas e na nossa História comum.

      Um grande abraço.

      Olinda

      Abraço

      Olinda

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  12. Uma delícia de texto, a convidar-nos ler o "todo".
    O Farol sempre é lugar de magia.
    Quem necessita de mais que a magia dos lugares onde se está bem?
    Bela escolha.

    Beijos

    SOL

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    1. Amigo Sol

      Farol como luz que guia os navegantes nas noites escuras e tempestuosas e

      Farol como ponto de apoio quando a vida se escapa por caminhos tormentosos

      tanto num caso como noutro, 'lugar onde se está bem' porque é fonte de luz.

      Obrigada pelo teu apreço.

      Abraço

      Olinda

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  13. Olindamiga

    Adoro o Ondjaki. É um regalo ler o que escreve , no Português dele, no nosso Português. Aliás, tenho de te dizer que este trabalho que vais publicando é notável. Uma recolha magnífica, um registo impressionante. Muito obrigado, ou melhor, twapandula.

    Eu vivi oito anos em Angola e o meu terceiro e último filho nasceu na freguesia da Nazaré, em Luanda. Mas, sei apenas duas ou três palavras em umbundo.
    Kandandos e qjs

    A nossa Mariamiga é a «culpada» de eu estar aqui. Só tenho de lhe agradecer.... e já te sigo, esperando-te na TRAVESSA.

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    1. Henriqueamigo

      Ondjaki pertence à nova geração de escritores angolanos e tem tido um percurso muito interessante. Costumo lê-lo também no Jornal de Letras onde ele escreve muito bons artigos.

      Gostei de saber que tem grandes motivos que o ligam a Angola, um filho ali nascido e uns bons anitos de permanência. E ainda por cima conhecendo o umbundo, uma das línguas da imensa Angola, comparada com este 'jardim à beira-mar plantado'

      Muito obrigada pelas suas palavras de apreço.
      Acho que já nos seguimos mutuamente, há algum tempo, mas vou adicioná-lo de novo, com muito gosto. :)

      Grande abraço.

      Olinda

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  14. Fiquei querendo ler mais, porém não os tinha o livro para complementar a leitura.
    Deve ser muito interessante este livro, pois a demonstração da capa fala por si só.
    Ps. Agradeço por comentar minha postagem lá no Espelhando e Espalhando Amigos.
    Deixo minhas páginas em blog a sua disposição.
    Abraço

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    1. Olá, Lucidreira

      Agradeço a sua vinda aqui ao meu Xaile. :)

      Achei interessantíssimo o seu post recordando o Dia Mundial da Língua Nacional, neste caso o Português, remontando às suas origens e passando pelas suas transformações conforme o espaço e as coordenadas geográficas.

      Muito obrigada pela disponibilização das páginas do seu blog e, claro, retribuo em relação ao meu.

      Abraço

      Olinda

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  15. Interessante. Conheço muito mal este autor.
    Um abraço

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