domingo, 20 de maio de 2012

A dissimulação

Chegou o sábado, chegaram outros sábados, e eu afeiçoei-me à vida nova. Ia alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim, os rapazes também, e Escobar mais que os rapazes e os padres. No fim de cinco semanas estive quase a contar a este as minhas penas e esperanças; Capitu refreou-me.
-Escobar é muito meu amigo, Capitu!
-Mas não é meu amigo.
-Pode vir a ser; ele já me disse que há de vir cá para conhecer a mamãe.
-Não importa; você não tem direito de contar um segredo que não é só seu, mas também meu, e eu não lhe dou licença de dizer nada a pessoa nenhuma.
Era justo, calei-me e obedeci. Outra coisa em que obedeci às suas reflexões foi, logo no primeiro sábado, quando eu fui à casa dela, e, após alguns minutos de conversa, me aconselhou a ir embora.
-Hoje não fique mais tempo; vá para casa, que eu lá vou logo.É natural que D. Glória queira estar com você muito tempo, ou todo, se puder.
Em tudo isso mostrava a minha amiga tanta lucidez que eu bem podia deixar de citar um terceiro exemplo, mas os exemplos não se fizeram senão para ser citados, e este é tão bom que a omissão seria um crime. Foi à minha terceira ou quarta vinda à casa. Minha mãe, depois que lhe respondi às mil perguntas que me fez sobre o tratamento que me davam, os estudos, as relações, a disciplina, e se me doía alguma coisa, e se dormia bem, tudo o que a ternura das mães inventa para cansar a paciência de um filho, concluiu voltando-se para José Dias:
-Sr José Dias, ainda duvida que saia daqui um bom padre?
-Excelentíssima...
-E você, Capitu, interrompeu minha mãe voltando-se para a filha do Pádua que estava na sala, com ela - você não acha que o nosso Bentinho dará um bom padre?
-Acho que sim, senhora, respondeu Capitu cheia de convicção.
Não gostei da convicção. Assim lho disse, na manhã seguinte, no quintal dela, recordando as palavras da véspera, e lançando-lhe em rosto, pela primeira vez, a alegria que ela mostrara desde a minha entrada no seminário, quando eu vivia curtido de saudades. Capitu fez-se muito séria, e perguntou como é que queria que se portasse, uma vez que suspeitavam de nós; também tivera noites desconsoladas, e os dias, em casa dela, foram tristes como os meus; podia indagá-lo do pai e da mãe. A mãe chegou a dizer-lhe, por palavras encobertas, que não pensasse mais em mim.
Com D.Glória e D.Justina mostro-me naturalmente  alegre, para que não pareça que a denúncia de José Dias é verdadeira. Se parecesse, elas tratariam de separar-nos mais, e talvez acabassem não me recebendo...Para mim, basta o nosso juramento de que nos havemos de casar um com o outro.
Era isto mesmo; devíamos dissimular para matar qualquer suspeita, e ao mesmo tempo gozar toda a liberdade anterior, e construir tranquilos o nosso futuro. Mas o exemplo completa-se com o que ouvi no dia seguinte, ao almoço; minha mãe, dizendo a tio Cosme que ainda queria ver com que mão havia eu de abençoar o povo à missa, contou que, dias antes, estando a falar de moças que se casam cedo, Capitu lhe dissera: 'Pois a mim quem me há de casar há de ser o padre Bentinho; eu espero que ele se ordene!' Tio Cosme riu da graça, José Dias não dessoriu, só prima Justina é que franziu a testa, e olhou para mim interrogativamente. Eu, que havia olhado para todos, não pude resistir ao gesto da prima, e tratei de comer. Mas comi mal; estava tão contente com aquela grande dissimulação de Capitu que não vi mais nada, e, logo que almocei, corri a referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astúcia. Capitu sorriu agradecida.
-Você tem razão, Capitu, concluí eu; vamos enganar toda esta gente.
-Não é? disse ela com ingenuidade.

Dom Casmurro
Machado de Assis
capítulo 65: pgs 89 e 90



Imagem: Internet

10 comentários:

  1. Reli esse livro uns 25 anos depois
    do período escolar.
    Foi um acontecimento.
    Apaixonei-me e como pessoas envolvida com a Palavra,
    sempre dou um jeito de sugerir que os jovens leiam com a visão excitante e apaixonada que tenho dele.
    Tem dado certo.
    Adorei ler postado aqui.

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    1. Minha querida

      A resposta ao seu comentário vem a seguir ao comentário da 'Maria'. Enganei-me ao clicar na caixa de comentários.

      Bjs

      Olinda

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  2. Olinda querida:
    Como gosto de Machado de Assis, sobretudo de "Dom Casmurro"!
    Tenho saudades de o voltar a ler. Este cheirinho, abriu-me o apetite.
    Beijinhos
    Maria

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    1. Querida Maria

      Adoro Machado de Assis. Conforme já respondi a 'Reflexos Espelhando...' é sempre um acontecimento quando o leio. Os seus personagens atraem-nos e às tantas já estamos a fazer parte do ambiente e a não querer largar o livro. Uma coisa que já notei é que os seus livros não são muito editados em Portugal. Mas há uma alternativa para quem o queira ler: pode-se fazer download de algumas das obras.

      :)

      Beijinhos

      Olinda

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  3. Para mim, também, é sempre um acontecimento quando leio Machado de Assis. A sua ironia, o aspecto crítico, e a forma como escreve quase dialogando com o leitor, prendem-nos do princípio ao fim. Outro dos seus livros que eu adorei ler foi 'As memórias Póstumas de Brás Cubas'. Num post sobre Cabo Verde, de ontem, verti uma passagem de um romance de Germano Almeida intitulado, 'As Memórias de um Espírito'. Mesmo separados no tempo poder-se-ia traçar um paralelismo sobre estes dois autores, quanto mais não seja na semelhança dos títulos e na ironia. Também há quem coteje forma de escrever de Machado de Assis com a de Eça de Queirós, sendo os dois contemporâneos. Aliás, li em tempos uma curiosa crítica de Machado de Assis ao romance de Eça de Querós, 'O Crime do Padre Amaro'. http://fredb.sites.uol.com.br/primo.html

    Minha querida, adorei a sua visita e o seu comentário.
    Tenha um excelente resto do domingo.

    Beijos

    Olinda

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  4. Já li este livro e amei!
    É lindo.Bela escolha querida.

    Beijão.

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    1. Olá, Fernanda

      Machado de Assis traz-nos sempre momentos deliciosos de leitura. É lê-lo uma vez e ficamos presos aos seus contos e à sua forma irónica de escrever.

      Bj

      Olinda

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  5. Machado de Assis, boa escolha.

    Bons sonhos, minha amiga

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  6. Infelizmente para mim conheço muito mal um escritor tão importante como Machado de Assis. A falar verdade nunca li nada dele a não ser pequenos trechos como este que encontro nos blogues amigos.
    Um abraço

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