Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações
engenhos enferrujados proas sem alento
nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras
Aqui aportaram vindos do Norte
por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
*e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas
Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas
E nas roças ficaram pegadas vivas
como cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.
E nas ilhas ficaram
incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d'óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans
E aos relógios insulares se fundiram
os espectros — ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas
Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.
in: O útero da casa
Conceição Lima
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- De: A poesia africana de Conceição Lima - Carlos Machado
com glossário.
- Sobre estes versos:
(...)
*e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas
(...)
veja aqui, no Xaile de Seda.
Imagem: daqui
o parto das bandeiras é sempre doloroso, bem se sabe!
ResponderEliminarque perdure, não nas bandeiras, mas no perfil das palavras o "perfume do alecrim"
mérito teu, amiga Olinda, dares a conhecer tão expressiva e fecunda Poeta
gosto, deveras!
abraço
"E nas roças ficaram pegadas vivas
ResponderEliminarcomo cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
escravo morto."
Boa noite, querida Olinda!
Uns versos emocionantes demais e enchem nossos olhos de lágrimas de vegonha por ter existido tal vexame na humanidade de escravidão de seres humanos como nós.
Tenha dias de alegrias em família!
Bjm carinhosos e fraternos de paz e bem
Tomei conhecimento com a poesia desta senhora há pouco tempo e gostei bastante. Engraçado que também a tenho agora no A mulher e a poesia.
ResponderEliminarAbraço
Gostei de ler... no entanto, percebo um ódio que já julgava ultrapassado...
ResponderEliminarA colonização marcou uma época histórica e acabada a horrível escravatura,
não fomos dos piores colonizadores... Há que também pensar nas horríveis lutas tribais e genocídios que os colonos evitavam.
No entanto, percebo bem a dor da autora.
Beijinhos, estimada Olinda.
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Um poema complexo no retrato que faz da afroinsularidade, sem dúvida.
ResponderEliminarGostei da sua escolha e de conhecer a autora.
Um resto de boa semana.
Boa partilha
ResponderEliminarBj
Mais um poema excelente desta poeta, Conceição Lima, que eu estou a adorar conhecer. Uma poesia profunda, a tocar em imensas feridas…
ResponderEliminarUm bom fim de semana, minha Amiga Olinda.
Um beijo.
"E nas roças ficaram pegadas vivas
ResponderEliminarcomo cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
escravo morto."
Conceição Lima é mesmo uma poeta para descobrir...
Ler "Afroinsularidade" dói e encanta.
Beijo, Olinda, e bom fim-de-semana.
Delícia de Poema com História. Assim foi o tempo que já passou, embora as feridas ainda continuem abertas.
ResponderEliminarMuito bom.
Beijo
SOL
Magnifico poema, obrigado pela partilha.
ResponderEliminarBom fim de semana
Beijinhos
Maria
Divagar Sobre Tudo um Pouco
Muito forte e belo. Agradeço a partilha, pois não conhecia este poema.
ResponderEliminarUm beijinho amigo, querida Olinda.
Esta "Afroinsularidade" tem a profundidade da dor e das descobertas. E Conceição Lima vai ao fundo da alma humana.
ResponderEliminarSó posso ficar reconhecida por este tocante recorte poético, querida Olinda Melo.
Beijos.