quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Afroinsularidade

Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações

engenhos enferrujados proas sem alento

nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras

Aqui aportaram vindos do Norte

por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
*e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas



Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas

E nas roças ficaram pegadas vivas

como cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.

E nas ilhas ficaram

incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d'óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans

E aos relógios insulares se fundiram

os espectros — ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas

Às vezes penso em suas lívidas ossadas

seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.

in: O útero da casa


Conceição Lima


=====

- De: A poesia africana de Conceição Lima - Carlos Machado
  com glossário.

- Sobre estes versos:
(...)
*e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas
(...)
veja aqui, no Xaile de Seda.

Imagem: daqui

12 comentários:

  1. o parto das bandeiras é sempre doloroso, bem se sabe!
    que perdure, não nas bandeiras, mas no perfil das palavras o "perfume do alecrim"

    mérito teu, amiga Olinda, dares a conhecer tão expressiva e fecunda Poeta
    gosto, deveras!

    abraço

    ResponderEliminar
  2. "E nas roças ficaram pegadas vivas
    como cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
    escravo morto."

    Boa noite, querida Olinda!
    Uns versos emocionantes demais e enchem nossos olhos de lágrimas de vegonha por ter existido tal vexame na humanidade de escravidão de seres humanos como nós.
    Tenha dias de alegrias em família!
    Bjm carinhosos e fraternos de paz e bem

    ResponderEliminar
  3. Tomei conhecimento com a poesia desta senhora há pouco tempo e gostei bastante. Engraçado que também a tenho agora no A mulher e a poesia.
    Abraço

    ResponderEliminar
  4. Gostei de ler... no entanto, percebo um ódio que já julgava ultrapassado...
    A colonização marcou uma época histórica e acabada a horrível escravatura,
    não fomos dos piores colonizadores... Há que também pensar nas horríveis lutas tribais e genocídios que os colonos evitavam.
    No entanto, percebo bem a dor da autora.
    Beijinhos, estimada Olinda.
    ~~~~

    ResponderEliminar
  5. Um poema complexo no retrato que faz da afroinsularidade, sem dúvida.
    Gostei da sua escolha e de conhecer a autora.
    Um resto de boa semana.

    ResponderEliminar
  6. Mais um poema excelente desta poeta, Conceição Lima, que eu estou a adorar conhecer. Uma poesia profunda, a tocar em imensas feridas…
    Um bom fim de semana, minha Amiga Olinda.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
  7. "E nas roças ficaram pegadas vivas
    como cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
    escravo morto."
    Conceição Lima é mesmo uma poeta para descobrir...
    Ler "Afroinsularidade" dói e encanta.
    Beijo, Olinda, e bom fim-de-semana.

    ResponderEliminar
  8. Delícia de Poema com História. Assim foi o tempo que já passou, embora as feridas ainda continuem abertas.
    Muito bom.


    Beijo
    SOL

    ResponderEliminar
  9. Magnifico poema, obrigado pela partilha.
    Bom fim de semana
    Beijinhos
    Maria
    Divagar Sobre Tudo um Pouco

    ResponderEliminar
  10. Muito forte e belo. Agradeço a partilha, pois não conhecia este poema.
    Um beijinho amigo, querida Olinda.

    ResponderEliminar
  11. Esta "Afroinsularidade" tem a profundidade da dor e das descobertas. E Conceição Lima vai ao fundo da alma humana.
    Só posso ficar reconhecida por este tocante recorte poético, querida Olinda Melo.

    Beijos.

    ResponderEliminar