domingo, 2 de abril de 2017

A Graça




Que harmonia suave
É esta, que na mente
Eu sinto murmurar,
Ora profunda e grave,
Ora meiga e cadente,
Ora que faz chorar?
Porque da morte a sombra,
Que para mim em tudo
Negra se reproduz,
Se aclara, e desassombra
Seu gesto carrancudo,
Banhada em branda luz?
Porque no coração
Não sinto pesar tanto
O férreo pé da dor,
E o hino da oração,
Em vez de irado canto,
Me pede íntimo ardor?

És tu, meu anjo, cuja voz divina
Vem consolar a solidão do enfermo,
E a contemplar com placidez o ensina
De curta vida o derradeiro termo?

Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,.
Da aurora à frouxa luz,
Me dizias: «Acorda, inocentinho,
Faz o sinal da Cruz.»
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos
De inda puro sonhar,
Em nuvem d'ouro e púrpura descendo
Coas roupas a alvejar.
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,
Junto ao bosque fremente,
Me contavas mistérios, harmonias
Dos Céus, do mar dormente.
És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta
Modulavas o canto,
Que de noite, ao luar, sozinho erguia
Ao Deus três vezes santo.
És tu, que eu esqueci na idade ardente
Das paixões juvenis,
E que voltas a mim, sincero amigo,
Quando sou infeliz.
Sinta a tua voz de novo,
Que me revoca a Deus:
Inspira-me a esperança,
Que te seguiu dos Céus!...
    (1810-1877)


É esta a imagem que guardo de Alexandre Herculano, desde sempre. Cara fechada, austera, sem o laivo de um sorriso. Quem sabe se ele não seria uma pessoa dada, risonha e amável. Mas aqui ficou para sempre. A fotografia ou o retrato têm esta particularidade: firmam de forma indelével o momento, uma expressão.

A sua época não foi das mais pacíficas. Aliás, foi um tempo de grandes mudanças. Nasceu sob o signo das invasões francesas com todas as suas implicações e assim foi crescendo, vivenciando os problemas trazidos pela fuga da família real para o Brasil, ou a transferência da corte portuguesa para o Brasil. Herculano não fica de lado a observar. Envolve-se na vida política denunciando o perigo do absolutismo e, mais, toma parte activamente nas lutas liberais que opõem os dois irmãos, D.Pedro IV e D.Miguel.

E quanto ao aspecto cultural? Temo-lo também situado em vários patamares e a produzir intensamente em vários jornais e revistas, bem como escrevendo romances, olhar atento sobre o seu tempo e o passado. Quem não se lembra de Eurico, o Presbítero, romance histórico mas também de amor, a história de Eurico e Hermengarda? 

Na sua História de Portugal é considerado o introdutor ou precursor da historiografia em Portugal, a história como ciência.

Neste seu poema "A Graça" vejo-o a fazer o seu exame de consciência entre o que foi e o que podia ter sido:


És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta
Modulavas o canto,
Que de noite, ao luar, sozinho erguia
Ao Deus três vezes santo.
És tu, que eu esqueci na idade ardente
Das paixões juvenis,
E que voltas a mim, sincero amigo,
                                           Quando sou infeliz. 


Mas a esperança em dias melhores lá está.

Desejo-vos um bom domingo.

Abraço   

====
Poema: Banco de Poesia Fernando Pessoa

6 comentários:

  1. O Alexandre Herculano era um homem e um poeta cheio de profundidade. Sempre que o leio é como se tivesse um convite à reflexão. Gostei muito de o encontrar aqui.
    Uma boa semana.
    Beijos.

    ResponderEliminar
  2. Ao tempo que não o leio, pelo que, apreciei
    sobremaneira esta postagem...
    Uma semana muito aprazível, estimada Olinda.
    Beijinho.
    ~~~~

    ResponderEliminar
  3. De Alexandre Herculano só conhecia a prosa.
    Obrigada por esta partilha.
    Um abraço e uma boa semana.

    ResponderEliminar
  4. OI OLINDA!
    ÓTIMA PARTILHA, CONFESSO NÃO CONHECER A OBRA DO AUTOR QUE AQUI CITAS MAS, VOU CONHÊ-LO0NA CERTA.
    ABRÇS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

    ResponderEliminar
  5. Excelente partilha, amiga. Concordo com a tua leitura. Alexandre Herculano tinha uma faceta de recolhimento e um propensão para a comunhão com o simples, não admirando que fosse avesso a honrarias.
    Foi enorme, o nosso AH! Pelo vasta e diversificada obra literária, pelas funções que desempenhou e, extremamente relevante, pela inauguração de novas formas de expressão literária (a par de Almeida Garrett) e histórica, como bem sabes.
    Gostei imenso de ler esta partilha. Recordou-me os tempos académico e profissional.
    Bjo, Olinda

    ResponderEliminar