sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Trapos (iv)

Do fundo do corredor chegou outra maca, empurrada por dois bombeiros. Atrás dela, uma mulher ainda jovem chorava num aflitivo silêncio. A esposa do homem desviou-se ligeiramente do local onde se encontrava para deixar passar a maca.

— É uma criança — disse ao marido quando regressou ao lugar.
— E isto não anda nem desanda — respondeu-lhe o homem.
— Sossega, por favor.
— Olha-me as horas que são!
A mulher fez um sorriso triste.
— As horas são uma invenção dos homens.
— E o deixa-andar é a desculpa dos tolos.

Calou-se, arrependido do que dissera. Observou a criança, serenamente acomodada na maca desproporcional ao seu tamanho, e pensou que nunca puderam ter filhos. «Se os tivéssemos, tudo era diferente. Mas agora não vale a pena pensar nisso. Podia era ter trazido um jornal...»

O doente que estava sentado na ponta do banco, ao pé do homem, levantou-se e perguntou:

— Onde será a casa de banho?
— Ao fundo do corredor, à direita — responderam.
O homem sentou-se no lugar deixado vago. Era gordo, e quase não cabia no espaço. Nessa altura, a porta de um dos gabinetes abriu-se e a voz da enfermeira chamou alto:
— Alexandre José.

Quando o doente que acabara de ser chamado se levantou, levando nas mãos a ficha amarela, o homem aproveitou o espaço e, deixando de sentir resistência da senhora que estava a seu lado, puxou a esposa por um braço e obrigou-a a sentar-se. Falou-lhe de passagem na mulher doente que estava na sala de nebulizações, mas nada lhe disse sobre o pedido que esta lhe fizera.
Uma das portas do corredor, que não aquela por onde já haviam entrado três doentes, abriu-se e os bombeiros empurraram a maca que tinha chegado há pouco, com a criança. Doentes de outras macas que já ali se encontravam quando chegaram, mantinham-se estranhamente calados.


— Nunca mais chega a nossa vez — voltou a resmungar o homem.
— Tem calma — disse-lhe a esposa. — Há pessoas mais necessitadas de assistência do que eu.
— Estamos aqui a sofrer e isto não anda. Um pobre muito sofre!
— Aqui somos todos pobres.
— Parece-te, mas não somos. Alguns têm mais sorte.
— Todos pobres — repetiu a mulher. — Os ricos não vêm aqui e, mesmo que viessem, sem saúde, eram iguais a nós. Quem está doente é pobre.
— Os que já entraram são ricos...

O rosto da mulher apresentava agora um estranho cansaço, estava pálido e baço.

Estou doente e muito cansada. E essa tua insatisfação ainda me está a pôr pior. Vê se te calas!


"Trapos" - Conto de José Abílio Coelho
Continua...

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Meus amigos

Surgiram-me alguns compromissos inadiáveis que me fizeram abrandar a leitura, aqui, deste Conto.

Desde o início que a figura da mulher me chamou a atenção. Sempre pronta a desculpar os outros, procurando compreender a situação, esquecendo-se até de si própria. Até parece que parte dos seus males advém da maneira de ser do marido.

Ela faz-me lembrar alguém que eu conheço e por isso mesmo questiono-me: Tratar-se-á de uma bondade intrínseca que põe acima dos seus interesses os dos outros? Será receio de encarar os problemas de frente? Ou uma maneira de contrabalançar, quase inconscientemente, a verborreia do marido, adoptando uma atitude cordata e apagada?

Ciente de que na vida tudo tem de ser bem doseado, reconheço também a nossa complexidade como seres humanos.

Aguardando as vossas palavras, desejo a todos uma óptima sexta-feira.

Abraço.
:)

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Imagem: daqui


16 comentários:

  1. Pertinentes as suas perguntas sobre a figura da mulher. O marido, de facto, é uma pessoa complicada, deve custar a aturar também em casa. Mas eu confesso que desconfio um pouco de pessoas que dão a impressão de serem boas ao ponto de se esquecerem de si próprias. Pode ser esse medo de encarar os problemas, de que a Olinda fala. Também pode ser uma maneira de compensar a impaciência e o egoísmo do marido. Mas também pode ser uma necessidade enorme de ser amada, ou obter reconhecimento por parte dos outros.
    Bondade intrínseca? Custa-me responder a esta pergunta. Eu penso que todos temos bondade intrínseca, só que, nalgumas pessoas, ela foi aniquilada, dando azo a que se desenvolvesse a maldade intrínseca (como no marido dela). Se todos nascemos com iguais doses de bondade e maldade intrínsecas é algo a que penso ainda ninguém conseguiu responder.
    Excelente conto, boas personagens! Parabéns ao autor! Continuo a seguir ;)

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  2. .
    ~ Caracteres muito bem descritos, foram concebidos antagónicos, de uma forte oposição.
    ~ Estes extremos tão sublinhados, necessariamente, desempenham papel fulcral no conto.

    ~ ~ Continuo a apreciar e a aguardar... ~ ~

    Abraço amigo, com votos de agradável fim de semana.
    ~ ~ ~

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  3. Olinda, achei curiosa sua questão acerca da psicologia da mulher de seu conto por causa de sua atitude de docilidade e compreensão com a dor do outro. Acredito sim, que haja "bondade intrínseca" - porque há pessoas verdadeiramente boas que procuram, acima de tudo, ser justas nas atitudes com o outro. São pessoas muito sensíveis e com um nível elevado de autocrítica e sua atitude com o outro não é de desculpabilização mas de justificação, em que tenta, por análise da situação e da pessoa em causa, encontrar uma explicação para a atitude mostrada em determinado momento. E como pessoas sensíveis que são, sofrem quando, por sua vez, não são compreendidas.
    Esta é a minha visão baseada na experiência - feliz - com esse "tipo raro" de pessoas ;)
    Note-se que, nada disto tem, de longe, qualquer ligação com um outro tipo de pessoas - não raro - os falsos anjos. As que "perdoam" tudo, calam tudo... para ficar bem na fotografia.

    bjn amg

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  4. Na leitura que acabo de fazer, vejo um problema muito actual.......
    um problema aliás..., de todos os dias....(.Lamentavel)
    Beijo
    bfs

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  5. Estive a ler os «Trapos» - anteriores e este - e gostei muito da construção modelada das personagens.
    Vou estar atenta.

    (Anda difícil a vida escolar.)

    Beijinho meu, querida Olinda.

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  6. Comecei lá na primeira parte. Um drama que é muito atual, e uma situação que não muda nunca. As espera nos hospitais e a impaciência mas culina que chega a ser mais aflitiva do que a própria doença.
    Um abraço e bom fim de semana

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  7. Talvez seja uma miscelânea de tudo isso, uma resignação, uma passividade tão própria dos er português.

    Minha querida, um abraço e bom fim de semana

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  8. Querida amiga

    Um texto inquietador,
    pelas dúvidas
    e respostas contidas
    em sua mensagem escrita
    ou nas mensagens contidas
    nas entrelinhas imaginadas.

    ______________________________

    “Um sonho é uma parte de nós
    onde está guardada a semente da esperança.
    Cuidar desta semente é a minha,
    a sua, a nossa missão na vida.”

    Aluísio Cavalcante Jr.

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  9. Um Conto com vida (real) dentro. Generosidade e prepotência contrastam na execução do acto da caridade.
    Entristece-me "sentir" que os Seres sejam egoístas, mesmo no paralelismo dos acontecimentos.




    Beijos


    SOL

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  10. Tudo me parece mais real que a ficção

    Bj

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  11. (^‿^)✿

    Bonjour chère Olinda !

    Oh ! C'est un beau texte que tu offres ! MERCI pour ce superbe partage.

    GROSSES BISES d'Asie jusqu'à toi !
    Bonne continuation !!!!

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  12. As esperas nos hospitais desesperam qualquer um, mas os homens são bem mais impacientes e infelizmente já observei isso das várias vezes que tive de estar com familiares nas urgências.
    Boa semana
    Beijinhos
    Maria

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  13. Gostei do que li. Momentos de dor espalhados pelas salas de espera dos hospitais.
    Os olhos vagueiam nos que chegam e nos que são chamados.
    A dor e o desespero da espera desdobram-se em angústias sem afectos...
    A tudo isso se junta a impaciência de muitos e a incapacidade de respostas dos que do lado de dentro vão organizando milagres de coragem e de persistência.

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  14. Um drama bem real. Essa espera nas salas de consulta dos hospitais deixam as pessoas impacientes e a passividade da doente talvez seja apenas uma maneira de acalmar o marido aflito
    Querida Olinda, obrigada pelo carinhos e pelos votos de melhora
    Um dia lindo e abençoado
    Beijos no coração

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  15. O conto, representa não só o ambiente diário das urgências hospitalares, mas também alguns dos aspectos característicos da nossa sociedade, como a resignação, etc.
    Gostei, é um magnífico conto.
    Tem uma boa semana, querida amiga Olinda.
    Beijo.

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  16. Revejo um (bom) bocado nessa mulher!
    Beijinhos, bom dia :)

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