sábado, 1 de fevereiro de 2014

Herança





O meu avô escravo
legou-me estas ilhas incompletas
este mar e este céu.

As ilhas
por quererem ser navios
ficaram naufragadas
entre mar e céu.

Agora
aqui vivo eu
e aqui hei-de morrer.

Meus sonhos
de asas desfeitas pelo sol da vida
deslocam-se como répteis sobre a areia quente
e enroscam-se raivosos
no cordame petrificado da fragata
das mil partidas frustradas.

Ah meu avô escravo
como tu
eu também estou encarcerado
neste navio fantasma
eternamente encalhado
entre mar e céu.

Como tu
também tenho a esmola do luar
e por amante
essa mulher de bruma, universal, fugaz,
que vai e vem
passeando à beira-mar
ou cavalgando sobre o dorso das borrascas
chamando, chamando sempre,
na voz do vento e das ondas.

Aguinaldo Fonseca
   (1922-2014)

(Claridade, nº8, 1958)

in: No Reino de Caliban, pgs 158/159


Imagem:Trabalho de Eduardo Malé
artista são-tomense


16 comentários:

  1. Olá, tudo bem ?

    Vim até cá, para desejar-te um fim de semana muito bom.
    Com muito Sol. Muito calor. E muitas piscinas refrescantes, como as da Cidade de São Paulo. Isto é, para as Cidades, onde o Mar, não oscula as suas orlas.
    Um abraço do
    José Maria Souza Costa.

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  2. Olinda Melo, bom dia, desde cá do Brasil

    Eu também, tenho um blogue. Muito simples, é verdade. Escrito, sem a preocupação de regras gramaticais. Mas, feito com muita seriedade. Ainda que muito simples. Estou cá lhe convidando em visitar-me, e se possível seguirmos por lá. Eu, estou cá desde já, seguindo o Vosso
    Um abraço abrasileirado. Aguardo-te.

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    1. Olá, José

      Por cá o Mar tem osculado as suas orlas e extravasado as mesmas. É tanto o vento e a chuva juntamente com o frio que, presentemente, só uma piscininha de água tépida me faria decidir em cair à água. :)

      Muito obrigada pela sua visita e pelas suas palavras refrescantes. Já fui ao seu blog e deixei lá o meu comentário.

      Abraço

      Olinda

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  3. A escrita africana deveria ser muito mais divulgada e conhecida, realmente.

    Mas a verdade é que são sempre os vencedores e os conquistadores a contar a sua versão do que aconteceu...

    Minha querida Olinda, bom fim de semana

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    1. Tem razão, querida São. A História tem, realmente, esta falha muito grande.
      Há, por exemplo, uma obra do autor franco-albanês, Amin Malouf, 'As cruzadas vistas pelos árabes', onde os cristãos são vistos como 'bárbaros', sem honra, sem dignidade e sem ética social, diferentemente da descrição panegírica das mesmas na historiografia ocidental.

      Beijinhos

      Olinda

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  4. Minha querida Olinda
    Pode-se considerar como uma forma de homenagem que prestas a este poeta cabo-verdiano que nos deixou há poucos dias.
    Estive na sua terra natal, Mindelo, dois anos, e nunca lá ouvi falar dele. E olha que nessa altura eu lia muito mais poesia do que presentemente. Não é que tenha deixado de gostar, claro, só que "outros valores mais altos se alevantam"...
    Só cá, ao investigar poetas de língua portuguesa (publiquei alguns, há um certo tempo), é que o descobri.
    O seu valor não foi muito reconhecido, não. Ele escreveu um poema que, para mim, é talvez o mais bonito - "Mãe preta".
    Mas a tua escolha também é muito boa.

    Muito obrigada pelas tuas palavras tão lindas e carinhosas, lá na minha «CASA».
    Continuarei a escrever, sim, embora, por enquanto, a minha poesia seja... de principiante.
    Com o carinho e apoio de todos... tentarei não vos desiludir muito :)

    Um bom Domingo, querida.
    Beijinhos

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    1. Querida Mariazita

      Tendo estado no Mindelo durante dois anos, sentiste o cheiro da terra, a 'morabeza' e hospitalidade das gentes de lá.
      Nesta minha homenagem a Aguinaldo Fonseca também trouxe a 'Mãe Preta', (num post um pouco mais baixo) poema considerado de referência à afirmação da africanidade ou negritude como conceito, do poeta. Realmente consta que ele não foi muito lembrado. Também é certo que se radicou em Portugal e que deixou de publicar. Enfim, os senhores da cultura deveriam ter em atenção estes marcos da literatura.

      Quanto aos teus trabalhos: Gosto de ler tanto em prosa como em poesia. Nunca nos desiludes. :)

      Beijos

      Olinda

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  5. Querida amiga

    Magia esta a que existe em um poema.
    Mesmo a tanto tempo escrito,
    pode-se sentir as mãos
    e os sentimentos,
    de quem tão intensamente
    o escreveu.

    Ser feliz,
    é deixar-se engravidar
    pela simplicidade da alegria.

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    1. É isso mesmo, caro Aluísio.
      Deixar-nos enamorar de quem tão bem exprime os seus sentimentos e os do seu povo. E a magia se faz poema.

      Abraço.

      Olinda

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  6. Prezada Olinda, como é bom estar aqui e saborear em toda sua plenitude, a beleza dos poemas postados. Quero reiterar meu apreço por tão lindo espaço que você carinhosamente administra.
    Um fraterno abraço, minha admiração sempre.

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    1. Caro amigo Poeta

      Tão grande a minha alegria ao vê-lo aqui, com as suas palavras sempre lindas e atenciosas.
      Desejo-lhe tudo de bom. Irei ao seu espaço visitá-lo, embora saiba que não tem publicado, ultimamente.

      :)

      Um grande abraço

      Olinda

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  7. E... duma maneira ou doutra, não somos todos escravos?
    Beijinhos!

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    1. Talvez sim, Caro Vieira Calado. Há muitas outras escravidões, muitas vezes nascidas no nosso íntimo, amarras das quais não nos libertamos. Importante abrir-nos para o mundo e ver mais longe e alargar horizontes.

      Não tenho podido comentar no seu blogue. Há lá um pormenor que eu não percebo.Mas tenho-o visitado e leio sempre os seus poemas com muito prazer.

      Abraço

      Olinda

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  8. Me embrenho na poesia caboverdiana, africana, com a mesma necessidade, sede e fome com que me embrenho na brasileira e portuguesa. Digamos que tenho especial apreço pela poesia luso-afro-brasileira, sem desconsiderar as demais, todavia, essas três são deveras importantes para mim, posto que, são a minha formação.

    A poesia do Aguinaldo, me fez reler alguns poemas do Corsino Fortes, em especial a trilogia: A cabeça calva de Deus: Pão & fonema; Árvore & tambor. Creio que o conheces, sim? Eu esperei quase dois meses, para que o meu livro, A Cabeça Calva de Deus, chegasse de Portugal, via livraria, mas valeu a espera!

    Mas deixo-te mesmo assim, uns linkes, que penso, vale a pena espiar:

    http://www.buala.org/pt/cara-a-cara/corsino-fortes-e-sua-poetica-semeadora-da-cabeca-calva-de-deus

    http://cdeassis.wordpress.com/2009/05/31/de-cabo-verde-corsino-fortes/

    Beijos, amiga!

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  9. Trago mais um link:

    http://www.escritas.org/pt/corsino-fortes

    Beijo!

    ;))

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    1. Vê-se que o propósito de 'não-evasão' em Corsino Fortes se aproxima da 'nova poesia' adoptada por Aguinaldo Fonseca. Obrigada pelos links que me trouxeste. Permitiram-me actualizar alguns dados e encontrar outros que já eram do meu conhecimento. Na Antologia 'No reino de Caliban', organização de Manuel Ferreira, tenho alguns poemas de 'Pão & Fonema', 1974, e alguns outros publicados na revista Claridade, em 1960, no Boletim dos Alunos do Liceu Gil Eanes, e na Revista Cabo Verde. Um deles é 'Pecado Original', também constante de um dos links, e de que gosto muito. Registo este apontamento:
      "(...)
      E não poder fugir
      Não poder fugir nunca
      A este destino
      De dinamitar rochas
      Dentro do peito..."

      Urge que me actualize em relação às suas obras mais recentes.

      Querida amiga, emociona-me a abrangência dos teus gostos poéticos, tão iguais aos meus. Agradeço o teu apreço, as palavras que dedicas aos posts e o interesse que pões nestas nossas conversas.

      :)

      Beijinhos

      Olinda

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