quinta-feira, 8 de novembro de 2012

*Carta do Achamento do Brasil - Parte X



Sexta-feira, 1 de maio: E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, em nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.

Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando ali nisso, vieram bem cento e cinqüenta ou mais.

Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o Padre Frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.

E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nós pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantados, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.

Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros.

Algum deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.

Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu, junto com o altar, em uma cadeira. Ali nós pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo é o dia, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentos a devoção.

Esses, que estiveram sempre à pregação, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse uma ao pescoço de cada um. Pelo que o Padre Frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e a levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta.

Isto acabado - era já bem uma hora depois do meio-dia - viemos a comer às naus, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deulhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.

E, segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os baptizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram ambos.

Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.

Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação.

Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.

Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.

Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, o longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa.

Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão arvoredos. que nos parecia muito longa.

Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem 1ho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre Doiro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.

Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.

Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.

E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, isso bastaria. Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.

E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.

E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, com em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer graça especial, mande vir da ilha de São Tome a Jorge de Osório, meu genro - o que d' Ela receberei em muita merçê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha

Fonte: UOL aqui
Imagem: lepanto.com.br
*Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D.Manuel - Ano de 1500

Ver: 1º post ; 2º post3º post4º post; 5º post6º post7º post8º post9º post; 10º post.

11 comentários:

  1. Olinda, Ilha de Vera Cruz é um nome que soa formoso aos meus sentidos.
    Descubro o quanto é gostoso acompanhar-te por este tour a um passado remoto, mas ao mesmo tempo, tão presente.
    Um abraço.
    Beijos.

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  2. Olinda, tenho que te agradecer esta ideia original de homenageares o Brasil. Tem sido muito interessante rever a história destes dois países e tenho-me " divertido " com o tipo de linguagem. Muito interessante! Beijinhos, amiga e desejo-te um belo fim de semana
    Emília

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  3. Realmente uns posts de muita utilidade para quem gosta de História e de
    saber sobre o passado. A grande ligação dos portugueses aos brasileiros
    deveria ser cimentada de uma forma muito mais forte hoje em dia.
    Portugal preciaria(neste momento) de uma maior ajuda do Brasil.
    Não estarmos unicamente dependentes da Troika.
    Beijinhos e bom fim de semana
    Irene Alves

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  4. Querida Olinda:
    Estou a habituar-me às lentes novas. Vou lendo aos pouquinhos.
    Teve uma excelente ideia em publicar "A carta do Achamento". É um documento interessantíssimo.
    Abraço grande
    Maria

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  5. Olá Olinda,
    Um post muito importante! Um primor!
    Isso foi realmente um grande achado, grande Carta de Pêro Vaz de Caminha.

    Parabéns pela postagem!

    Beijos e ótima semana!

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  6. Tão fascinados ficaram que os dois grumetes se escapuliram do navio durante a noite ,achei este pormenor do relato muito engraçado.Se fossemos americanos de Hollywood,só este caso já daria um filme :)



    another blog in the sky

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  7. Uma data de luto para os pobres nativos. Entristece-me muito o que estão a fazer no Brasil para tirar aos índios a pouca terra que ainda têm, uma vergonha e uma ganância incrível num país tão grande!
    Beijinhos, boa semana!

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  8. "Chantar" é um termo que desconhecia completamente.


    Continua interessante a leitura, claro.

    Boa semana, minha amiga.

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  9. Realmente ficamos fascinados com estes relatos que na qual muito de n´s brasileiros ainda tinham como desconhecido na sua totalidade dos manuscritos. Gostei também muito de como a comunicação se dava em áureas épocas "do descobrimento" escrito com graça e elegância, pois em se tratando de um servidor da coroa portuguesa direcionada ao Rei Port ugues de época.
    É disso que precisamos em relação a nossa história.
    Parabenizo ao Xaile de seda por essa oportunidade de deixar a disposição essa narrativa de grande valor cultural e histórico.
    Tinha lido os capítulos anteriores de I ao VII, concluindo a leitura por agora, por fim comentando. Estou compartilhando no g+ e no Face.

    Abraço

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  10. E por esta e outras gentilezas, Olinda, venho hoje no dia mundial da GENTILEZA deixar-te um beijinho muito especial e agradecer-te por seres uma pessoa super GENTIL. Muito obrigada, Olinda! fica bem!
    Emília

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  11. Já há muito que não lia, mesmo que trechos esparsos, esta 'Carta'. O tema, como se costuma dizer, 'daria pano para mangas'. Seja sobre Cabral, Gama ou Colombo, para só referir estes. Há uns tempos atrás, e a propósito dos 500 anos da 'descoberta' das Américas, recordo que a determinada altura deixava esta questão: 'Se para a aranha a mosca é a sua sobrevivência, o que será a teia para mosca?...
    Abraço!

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