quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Óculos escuros

os aviões levantam,
quase invisíveis sob o êmbolo da chuva,
as coisas ditas, como peças
desenhadas sobre páginas de manual.
nítidas e incompreensíveis.
a luz do ocidente
dispara primeiro, através da opacidade
do que nos é permitido,
as perguntas vêm mais tarde, a sua cadência
rasgando o telão do senso comum

o peso nosso comum,
o estado em que nos empenhamos
contra a ideia de que nunca existiu
uma verdade estável, una
e se perderam os autores do guião

tendo-lhes surgido um campo aberto,
as possibilidades confundidas em
inesperadas extensões de vida pública
a perder de vista.

para nós, a definitiva lapidação da tarde
tinge de vermelho
o convexo dos óculos de sol,
as paredes da equação evadem-se
no cravo do fast forward.

Rui Cascais
in: a carne do rosto

24 comentários:

  1. Oi Olinda.
    Amiga, há algum tempo atrás por estas bandas de cá... Os óculos escuros eram um charme, evocando para quem os usasse um certo ar de mistério...
    Hoje... quem os usa por aqui, quer proteger a visão dos raios, e quem está bem informado, dirá que servem para diminuir a quantidade de radiação que penetra nos tecidos oculares... Outros os usam numa ocasião de luto... Mas há quem os use para demonstrar um poder oculto nos corredores do Palácio, nas tribunas, atrás de um fuzil AR-15, ou nos palanques pedindo votos...
    Não querem mostrar sua alma, mas querem que todos a vejam...
    Um beijo

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    1. Caro Antônio

      Uma excelente análise: óculos escuros que muitas vezes deixam de ser usados naquilo para que foram criados, servindo então para esconder a própria alma, com objectivos inconfessados. Infelizmente deparamos continuamente com quadros destes neste nosso mundo. Nesta fogueira de vaidades esquecem-se, com extrema facilidade, as metas primordiais consubstanciadas na pessoa humana, dando-se relevância ao supérfluo. E 'as paredes da equação evadem-se' realmente...

      Abraço

      Olinda

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  2. Confesso que não conhecia este poema. Talvez que por razões profissionais fiquei preso na expressão 'os aviões levantam, quase invisíveis sob o êmbolo da chuva'. Gostei! Por outro lado, não me escapou o facto de, também os Poetas (como os fotógrafos), sempre privilegiam o entardecer em desfavor da matina. Dizia um amigo meu 'pois, ambos são belos, é certo, mas para fotografar o alvorecer preciso de me levantar muito cedo....
    Grato pelas suas (exageradas) palavras.
    abraço.

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    1. Olá, Jorge Esteves

      Agora que o refere, vejo que, na verdade, os poetas e os fotógrafos têm muitos pontos em comum: a arte de fazer chegar até nós a sua visão do mundo e das coisas, procurando o melhor ângulo, a luminosidade ideal, muitas vezes por amor à perfeição mas que acaba por também nos influenciar, seja à matina ou ao entardecer...captando os alvores da madrugada ou os tons fulvos do pôr-do-sol. A escolha do momento de luz mais propício e, melhor ainda, quando se junta o útil ao agradável, como o seu amigo, também é uma arte... :)

      Abraço

      Olinda

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  3. OI OLINDA!
    UM TEXTO ONDE O AUTOR FALA EM METÁFORAS PARA MIM COM UMA CONOTAÇÃO POLÍTICA, NA VERDADE OS ÓCULOS DE SOL, SÃO APENAS ESCUDOS OS QUAIS USA PARA DIZER O QUE LHE IA NA ALMA NO MOMENTO...
    ABRÇS

    zilanicelia.blogspot.com.br/

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    1. Querida Zilani

      Também a mim me parece que o autor deixa entrever palavras que nos remetem, como bem disse, para áreas de conotação política. Há no ar uma crítica, uma certa decepção sobre coisas que deviam fazer parte do nosso 'senso comum' mas que se esvaem em 'inesperadas extensões da vida pública a perder de vista'.
      É interessante verificar que não se sabe nada (ou quase) sobre o autor, o que nos dá uma certa liberdade de pensamento. Postei um poema dele em tempos, 'Costura', e foi uma coisa linda de se ver, a oportunidade que tivemos, como agora, de fazer este exercício.

      Obrigada, amiga.

      Beijos

      Olinda

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  4. Obrigada por me ter dado a conhecer um poeta que nem sabia que existia.

    Bom fim de semana, querida Olinda

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    1. Olá, São

      Tem razão, este poeta não é muito conhecido, pelo menos que eu saiba. Tomei conhecimento da sua obra através de um livro de poemas, 'A carne do Rosto', que me foi oferecido. Mesmo em termos biográficos não encontrei muitos elementos na Net.

      Bjo

      Olinda

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  5. Não conhecia o poeta, gostei!
    Bom fim de semana
    Beijinhos
    Maria

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    1. Olá, Maria

      Sim, não é muito conhecido.
      Dos seus poemas emana uma grande força. Vamos atrás das questões que ele coloca e acabamos sempre por encontrar algo que nos diz respeito.

      Bjos

      Olinda

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  6. Sem óculos admito ter feito outra leitura

    assim...
    prefiro o sol
    a céu aberto

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    1. Olá, Mar Arável

      Realmente com óculos escuros as coisas ficam mais difusas, o céu já não parece tão azul e o mar também não...pois, como diz F. Pessoa, foi nele que Deus espelhou o céu; e então o mais seguro, talvez, será deixarmo-nos banhar pelos raios solares, em toda a sua pujança, desprezando um pouco a incidência dos temíveis UV (mas também tão necessários à vida na Terra).

      Abraço

      Olinda

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  7. Eu costumo dizer que os óculos escuros não servem só para protecção do sol; os olhos são o espelho da alma...são o que na realidade mais sinceramente falam; a boca fala aquilo que a pessoa quer, mas os olhos dizem logo que o que estamos a ouvir não é o que a pessoa está a sentir. Não conhecia o poema, mas gostei muito. Obrigada pela partilha, Olinda. Desejo-te um bom Domingo e uma excelente semana. Sabes, não gosto de conversar com pessoas que nunca tiram os óculos escuros, mesmo quando estamos numa mesa de café. Para quê os óculos se o sol está lá fora? Mesmo lá fora nem sempre incomoda, mas os óculos continuam lá.... Beijinhos
    Emília

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    1. Ora, aqui está, querida Emília, uma excelente abordagem: os espelhos são realmente 'o espelho da alma', diz o povo e com razão. A intenção com que as palavras são ditas, os sentimentos, tendem a fugir por estas duas janelas, traindo os seus emissores. Nada como falar de olhos nos olhos, de coração aberto e alma lavada, mormente quando os óculos de sol deixam de ter utilidade. A conversa flui e o riso marca o seu espaço de eleição: o convívio.

      Uma boa semana feliz para ti e para os teus.

      Beijinhos

      Olinda

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  8. Um poema fulminante, eu diria! E o que falar diante dele? Porque a mim causou profundas e dilacerantes reflexões, detive-me em alguns pontos, mas um em especial, quero relevar: "dispara primeiro, através da opacidade
    do que nos é permitido,
    as perguntas vêm mais tarde", o retrato da nossa sociedade, o mundo global e suas vivências.

    Outro grande poema de um excepcional poeta que tu nos trazes, Olinda, obrigada!

    Deixo-te um beijo e desejos de um ótimo domingo, querida!

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    1. Querida amiga

      Esta passagem é um dos momentos mais altos do poema, pelas situações que nos deixa adivinhar, pela cegueira denunciada e pelo pouco que nos é permitido sem que para isso tenhamos voto na matéria. Um retrato contundente dos dias que estamos a atravessar e da falta de sensibilidade nas relações humanas, na sociedade global.

      Minha querida, muito obrigada por este comentário. Desejo-te uma excelente semana.

      Beijinhos.

      Olinda

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    1. Olá, Marta

      Muito obrigada e um bom início de semana.

      Bjo

      Olinda

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  10. Belo poema, cheio de força e palavras perenes.


    Beijo grande e boa semana.

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    1. Querida Ana

      Sim, palavras que permanecem em nós criando raízes na interpretação do que nos rodeia.

      Bjos

      Olinda

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  11. Uma escelente escolha, pelo tema, pelas "imagens " nele contigas e que nos fazem parar para pensar!
    Obrigada. Bj

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    1. Querida BlueShell

      Falas nas imagens que o autor nos transmite através das suas palavras.Concordo contigo. A sua expressividade é tão intensa que conseguimos visualizá-las, perfeitamente.

      Bjo

      Olinda

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  12. Olá querida Olinda.
    Gostei do poema e da escolha.
    Do sentimento que passa e e de sua profundidade.

    Beijo

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    1. Querida Fernanda

      É mesmo, é disso que se trata:sentimento e profundidade. Eu não saberia dizê-lo melhor.

      Beijos

      Olinda

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