quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O Advento

Sou o que fui na aurora, entre a tribo.
Deitado em meu canto da caverna,
Lutava por afundar nas obscuras
Águas do sonho.
Espectros de animais
Feridos pelo estilhaço da flecha
Davam horror à negrura.
Mas algo,
Talvez a execução de uma promessa,
A morte de um rival sobre a montanha,
Talvez o amor, ou uma pedra mágica,
Me fora outorgado. Perdi tudo.
Pelos séculos gasta, a memória
Só guarda essa noite e sua manhã.
Sentia desejo e medo.
Bruscamente
Ouvi o surdo tropel interminável
De um rebanho atravessando a aurora.
Arco de roble, flechas que se cravam,
Deixei-os e corri até a greta
Que se abre no extremo da caverna.
Foi então que os vi.
Brasa avermelhada,
Cruéis os cornos, montanhoso o lombo,
A crina lúgubre como os seus olhos
Que espreitavam malvados. 
Aos milhares.
São os bisões, eu disse.
A palavra Nunca antes passara por meus lábios,
Mas senti que talvez fosse seu nome.
Era como se eu nunca houvesse visto,
Como se houvesse estado cego e morto
No tempo antes dos bisões da aurora.
Eles surgiam da aurora.
Eram a aurora.
Não quis que os outros profanassem
Aquele denso rio de bruteza
Divina, de ignorância, de soberba,
Indiferente como as estrelas.
Pisotearam um cão do caminho;
Teriam feito o mesmo com um homem.
Depois os traçaria na caverna
Com ocre e cinábrio. 
Foram os Deuses
Do sacrifício e das preces.
Nunca
Disse minha boca o nome de Altamira.
Foram muitas minhas formas e mortes
.

Jorge Luís Borges






Este poema foi-me trazido por Canto da Boca na altura em que publiquei, aqui, um poema apócrifo atribuído a este autor e intitulado InstantesPoderemos assim fazer um cotejo entre os dois poemas ou simplesmente lê-lo e sentir o pulsar desta grandiosa forma de escrever.


Sobre o autor, fui buscar ao Bibliotecário de Babel estes elementos:

Argentino de cultura anglófona, Borges viveu a infância na biblioteca do pai e atravessou a vida como se nunca de lá tivesse saído. O seu universo é livresco no melhor sentido da palavra, erudito, especulativo, fantástico, reinventando permanentemente os grandes temas (o tempo, o infinito, a ordem secreta do mundo). Em vez de «compor vastos livros», preferiu «simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário». Poeta maior, ensaísta agudíssimo e enciclopédico, escreveu dezenas  de contos perfeitos, atravessados por tigres, espelhos, labirintos, simulacros e parábolas. Alguns dos mais geniais estão em FicçõesTlön, Uqbar, Orbis TertiusPierre Menard, autor do QuixoteO Jardim dos Caminhos que se BifurcamA Biblioteca de Babel.
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Nota - O Advento consta de O Ouro dos Tigres, 1972

Imagem - internet

6 comentários:

  1. Dele , li um livro de contos e via a adaptação de um à televisão.

    Beijinho

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  2. Não me recordo de ter lido nada dele. Talvez o poema de que fala tenha sido postado numa altura em que não vim cá, ou talvez tenha lido na altura em que anda mais cansada e não recordo. Não sei.
    Um abraço

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  3. Querida Olinda:
    Gosto muito de Jorge Luís Jorge. Tem muita força a escrever em verso e prosa. Este poema é muito bom.
    Beijinho
    Maria

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  4. Querida Olinda, que alegria e prazer ver esse poema exposto no seu blogue. Não é sempre que eu tenho um poema preferido, ou um livro preferido de um autor que leio, tudo é sempre variável, mas confesso que em Borges, O Advento me leu, esse poema me elegeu, e não tem jeito, é o meu preferido. Não sei se pela força da ancestralidade que anuncia um mundo antes de mim; não sei se pela força que brota da luz que entra em cada minúscula greta da minha alma, a partir de cada re-leitura que faço dele, o caso é que desde que nos conhecemos, nunca mais nos apartamos... Esse poema tem a mesma significação para mim que o poema, A Palavra Seda (http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/joao-cabral-de-melo-neto/a-palavra-seda.php), ao lado do Cão Sem Plumas (http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/joao-cabral-de-melo-neto/o-cao-sem-plumas.php), ambos do João Cabral de Melo Neto; e Gaivota do Alexandre O´Neil, esses são os meus quatros poemas da vida inteira, é capaz que outros se alinhem a eles, mas esses jamais sairão de mim.

    E muito gentil linkar meu blogue aqui, querida, me senti honrada mais uma vez, meu melhor obrigada!

    Beijinhos e um maravilhoso final de semana!

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    Respostas

    1. Minha querida amiga

      Eu é que te estou imensamente grata pela tua presença e pelos comentários com que prestigias este meu espaço. E este é um dos mais preciosos ao dares a conhecer as tuas impressões sobre este poema que nos arrebata, de um autor como Jorge Luís Borges.

      Agradeço-te o teres-me trazido os links de outros poemas, A Palavra Seda e Cão sem Plumas, de João Cabral de Melo Neto. Fui em busca deles e adorei lê-los. Estou a pensar em fazer uns posts sobre o Ano dedicado a 'Portugal no Brasil e Brasil em Portugal' e de certeza que os trarei para ilustrar bons momentos de leitura.

      Quanto ao poema Gaivota, de Alexandre O´Neil, adoro-o, já fiz um post dele.

      Muito obrigada, Canto da Boca.

      Beijinhos

      Olinda

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