sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Ecos

Ponho o meu violão a tiracolo. Com as mãos livres e quase de gatas começo a subir o caminho íngreme, de pedras soltas, até conseguir chegar ao cimo. Os meus pés pisam o trilho desaparecido que me levará de volta a Chã de Rosinha. Do lado esquerdo visualizo, no outro lado do espelho, o milheiral maduro e olhando um pouco mais para cima vislumbro a ladeira seca, outrora prenhe de ervilheiras e batatal. Chego ao terreiro de debulha de cereais e às instalações, paredes periclitantes pedindo ajuda. Sento-me numa pedra, olho lá para baixo. No vale, a casa da tia Joana com a porta de entrada a lembrar uma igreja. Também não está em muito bom estado. Sem transição, admiro-me de nunca nos termos estatelado lá em baixo. Pego no violão. Vêem-me à memória as mazurkas que o meu pai tocava na sua viola de doze cordas. Bemol ou sustenido? Ensaio um pouco e sai-me um som bastante aceitável. Trauteio. Oiço nitidamente a voz cristalina da minha mãe numa das suas canções preferidas. Um som que me preenche e, logo, vejo-me a ansiar por um outro que a minha memória guarda ciosamente. Canto e toco.Toco e canto. Não, não é isto... já sei. Olho em frente, lá está a montanha escarpada quase a tocar os céus. Lá em cima, no planalto, fica Tabuleirinho. Chegar lá não é fácil. Faço então a viagem em contagem regressiva. Eu e os meus irmãos desafiando aquela mole gigantesca com os nossos gritos. Gritos que ecoam, repetindo-se, multiplicando-se, gradativamente, numa ondulação impressionante. É nesta altura que vejo a figura. Uma figura perpendicular à verticalidade rochosa, acompanhando em grande velocidade o rochedo que a gravidade não perdoa. Um e outro acabam no fundo do vale, na ribeira que guarda a norte a nascente de água pura. A figura levanta-se e inicia o percurso de volta, empurrando, com esforço titânico, o rochedo. Grito-lhe: Por que motivo fazes isso? Vais morrer estafado e esmagado... Ele responde-me: É o meu destino, uma maldição dos deuses. Aí soube que era ele, Sísifo, sobre quem pendia uma maldição que duraria até ao fim dos tempos. Será ele o Sísifo clássico ou o de Camus já decantado pela sua luneta do absurdo? Viro a cara por momentos e vejo ao fundo, longe, bem longe, uma nesga de mar, num mar arável. Uma janela do mundo acenava-me, uma janela para o mundo... 


Sisifo, de Tiziano Vecellio, 1548-1549
  Imagem:Google


Nota: a expressão 'uma nesga de mar'
é o título de um lindo poema do autor
do blog Mar Arável. Clicar na hiperligação

30 comentários:

  1. Depois de ler o seu texto me vem a provocação, e considerar duas situações:

    1ª hipótese, talvez essa janela também seja a prolongação da "maldição", de somente observá-la, ser tentada pelo seu chamado, sem no entanto jamais transpô-la, e continuar nessa condição cativa de deus(a) amaldiçoado(a), num quem sabe estado de auto-comiseração, ou

    2ª hipótese - escancarar essa janela e lançar-se nos mares aráveis, revoltos, buscar uma liberdade, construir outro destino e quebrar esse infortúnio, sair da condição de "mísero" deus(a), a expiar culpas, por sentir, ser e querer...

    Ah, esse texto nos dá tantas possibilidades e construções, Olinda. Brincar com a mitologia, adatando-a, ao momento presente, e o absurdo que vivemos agora, essa desordem mundial (e a desordem emocional), interligar com as memórias tão vívidas e sonoras, aqui descritas, que muitas vezes, tive a sensação de ouvir as notas e o canto, contigo...

    E deixo um beijo grande e carinho! E mais uma vez, você feliz e com saúde em 2012, ao lado dos que lhe são caros!

    ;)

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  2. Pelas janelas encontramos o mundo e outras portas que precisam ser transpassadas.
    Belíssimo texto!
    Olinda querida,
    Estarei de férias por um tempo.
    Deixo antes meu carinho e meus agradecimentos por sua linda amizade que me dá muita alegrias.

    Beijos!!!

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  3. Oi Olinda.
    Quantas janelas não descortinam para nós como que um mundo novo, uma experiência nova, ou um desafio ou uma escapatória?
    Os deuses as vezes são cruéis! (eles gostam de nos fazer sofrer, não? Bom, depois tem recompensa,rsr)
    Óh Sísifo que somos...
    Um abraço afetuoso, um beijo grande.

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  4. Muito bem aproveitado o mit de Sísifo!
    Excelente a procura da melodia...emtre os bemois e os sustenidos...afinal...quem não busca Harmonia? E não estaremos todos nós condenados...amaldiçoados...?

    Grata por tua visita. Entendeste o teor do meu poema. Fiquei feliz.
    Obrigada pelo elogio!
    É importante para mim.
    Bj

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  5. Belíssimo texto.
    Caminhei contigo em cada palavra.
    Olinda, querida amiga, tem um bom fim de semana.
    Beijo.

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  6. Minha amiga excelente escolha.
    Bom fim de semana
    Beijinhos
    Maria

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  7. ... é então quando nos reconhecemos, cada um de nós, empurrando pela montanha da vida acima, o seu penedo.
    Salva-nos a vontade.
    Belíssimo texto, minha amiga Olinda!

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  8. Eu é que fico feliz por ter encontradooo..belo texto mesmo:)

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  9. Como está?

    Desejo um

    BOM ANO

    para si!

    Saudações!

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  10. Olinda,

    Subir a montanha, empurrar a grande pedra, recomeçar de novo, abrir a janela, deixar que o sol entre, respirar fundo, ir à luta, não desistir, enfrentar a adversidade com a confiança da quem quer ultrapassar as dificuldades - é disso que n´so precisamos.

    E nada como belos textos inspiradores ou figuras da mitologia ou belas pinturas.

    Louvo o seu bom gosto nas acertadas escolhas que connosco partilha.

    Um beijinho.

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  11. Texto muito belo e bem escrito. Impressionou-me muito.
    Sisifo somos nós todos. Levamos a vida a empurrar o mundo. Será que alguém consegue?
    Beijo
    Maria

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  12. Sísifo é também um dos meu mitos preferidos.

    Continuo sem recever as actualizações...

    Uma excelente semana, Olinda

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  13. Se quisermos conquistar nossos objetivos temos agir. Tirar as pedras do caminho ou fazer com elas uma linda estrada...

    Beijão

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  14. Querida Olinda:
    Ah, as memórias que guardamos dentro de nós e que nunca estão quietas! A tristeza feliz ou a felicidade triste da saudade sempre a beter à nossa porta. E insiste, insiste, insiste, até abrirmos, mesmo sabendo que, ao abrirmos a porta e ao depararmos com ela, desabamos num pranto, mas um pranto de emoções doces.
    São essas referências do passado que constituem o alicerce da nossa vida, onde, tal como Sísifo, passamos o tempo todo a empurrar um pedregulho até ao cimo da montanha para depois o vermos cair e o voltarmos a empurrar até ao cimo. É a tragédia dos tempos modernos, é o absurdo das nossas vidas, em que sonhamos com o dia de amanhã e trabalhamos para o dia de amanhã, que é, afinal, o dia que nos vai aproximando da morte. Aquele absurdo que Camus tão bem captou e dissecou.
    Um grande abraço, sempre extensivo à sua filhota, e um bom ano de 2012.

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  15. Maravilhoso seu post.
    Estou de volta depois de uns dias ausente. Tudo de bom em 2012
    Desejo uma semana imensa de coisas boas. Obrigada pelo carinho da amizade...Um abraço!

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  16. Minha querida

    Por vezes temos que desenhar uma janela na alma para podermos alcançar a liberdade e não ficarmos presas naquele lugar que não consegue alçar o voo.
    Como sempre adorei a escolha.
    Beijinhos com carinho
    Sonhadora

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  17. É terrível e é preciso muita força e coragem para ser Sísifo!
    Beijinhos, Olinda, uma boa semana!
    Madalena

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  18. Olinda,

    Quão belo é o eco da música do nosso cotidiano!

    Feliz 2012!!

    Bjs!!

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  19. Gosto deste seu post. Sísifo admiro-o
    e gostei de ler o seu texto.
    Desejo esteja bem.
    Um grande beijinho
    Irene

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  20. Oi Olinda!
    Bonita narrativa, traz-nos a recordação e a força da vida, nunca paramos, sabendo que um dia vamos parar, mas esse dia ora longe, ora perto, daí aquela força, a Esperança,alguém me ensinou a contornar o pedregulho,mas ...continuo a empurrá-lo!
    Gostei.Até breve
    Herminia

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  21. Venho desejar um Bom dia e deixar um beijo em azul...
    BShell

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  22. Um beijinho também para ti, Blue. :)

    E um bom dia de trabalho.

    Obrigada

    Olinda

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  23. Adorei o texto...divinamente bem escrito.

    Beijinhos,

    Isabel

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  24. É sua amizade que desejo lembrar para sempre e estará sempre em meu coração,
    mantendo-nos aquecidos, fortalecidos e segura de que nunca estarei sozinha.
    E é assim que eu guardo você
    Minha linda Amizade.
    E é assim que eu quero guardar...
    Como alguém que estará longe, mas sempre lembrará de mim.
    Obrigada pelo carinho nesse um ano de Viagem comigo.
    Obrigada por estar do meu lado sempre sem notar meus defeitos
    me aceitando como sou.
    Sei que deixo muito a desejar em responder a sua visita
    mais tenho cada amigo e amiga no coração.
    Me perdoe por levar uma unica mensagem para visita
    infelizmente minhas mãos não ajuda .
    Porem me sinto feliz e recompensada por todos entender minha situação.
    Na postagem tem uma presente desse dia tão feliz para mim
    ficarei feliz em encontra-lo no seu blog.
    Obrigada ,Deus esteja com todos nos nessa jornada
    que Deus me permita estar contigo por muitos anos ainda.
    Beijos e carinhos.
    Evanir

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  25. E nada melhor quando as forças começam a faltar do que encontrar uma janela aberta para o mundo. Ela nos dará força.
    Um abraço e um 2012 com tudo o que deseje.

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  26. Ler um texto como o seu é uma experiência maravilhosa. Escrita perfeita, que nos conduz com beleza e admiração. A busca da harmonia, as lembranças, o caminho, o chamado.
    Magnífico!!!!!

    Bjs.

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  27. Grata pela força que tuas palavras carregam e trazem até mim. Te abraço com admiração,
    BShell

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  28. lindo texto cheio de força ,como tu.


    gosto sempre de te visitar espero para ti um bom ano.

    o inicio do Ano está a correr bem com o sucesso do meu livro Cantar África.

    deixo um beijinho

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