quinta-feira, 19 de setembro de 2024

O quintanista* e a pastilha ou o comportamento e a avaliação (2)

Realmente, isso do comportamento é uma coisa complicada. Este nosso quintanista tem consciência de que possui uma veia parlatória bastante acentuada, que adora aproveitar uma confusãozinha, enviar pequenas missivas, enfim, comunicar. Quando é confrontado com a expressão "mau comportamento", sente-se no direito de achar que mau comportamento é outra coisa. E ainda por cima por um deslize tem de pagar três vezes ou mais.

Até parece que o esforço que faz em cumprir o horário, fazer os T.P.C's, muitas vezes a cair de sono, estudar para os testes...uf!, não serve de grande coisa, pois lá vem sempre a história do comportamento a estragar tudo. É que suga tudo. Quando merece um cinco dão um quatro, quando merece um quatro dão-lhe um três, e quando merece um três...cruzes! E assim vão aumentando as estatísticas dos pouco dotados.




É mesmo isso. Lembra-se de ter saído nos jornais ainda há pouco tempo que nas duas disciplinas consideradas nucleares poucos são aqueles que conseguem sobressair. Pois, pois! São estudos feitos por quem não analisa também todas as peripécias por que passa um quintanista. Até porque atina bem com uma delas, e o professor sempre lhe vai escrevendo umas palavras simpáticas: "Muito bem! Continua a escrever assim." Uma vez este professor disse-lhe uma coisa de que não gostou, mas um quintanista tem de ter um certo poder de encaixe, principalmente quando é um conversador. Mas, em relação à outra disciplina, é uma seca. Se não fosse pelo professor que é uma daquelas pessoas de quem se gosta mesmo, "nem sei".

Mas, apesar de tudo o que lhe doeu mais foi ter sido injustiçado numa outra aula. No entanto, o encarregado de educação no seu papel socializante, mas muitas vezes castrador, disse-lhe: "Vá lá! Vai com calma".

É um bocado complicado compreender os adultos, sabem? Combinam uma coisa com os mais pequenos e quando lhes apetece alteram as regras. Dizem-lhes que têm de participar porque conta para a avaliação e quando pretendem fazê-lo não são autorizados. O nosso quintanista sentiu isso e contestou. Valeu-lhe uma interiorização longa e, no mínimo, abstracta de que não devia questionar o professor. Para além da mão dormente, não teve tempo de se preparar para o teste convenientemente. Também lhe ficou o sabor amargo da frustração...

* entenda-se: o/a

Olinda

(1998)

2ª e última parte

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Parte 1

Texto, na pele do "quintanista", interpretando um pouco as experiências da minha filha, nessa idade. 

imagem: pixabay

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Incêndios

 Portugal está a arder. Embora todos os anos a sanha incendiária aconteça, tendo nós a ilha da Madeira não há muito tempo sob chamas, estamos sempre com receio que se repita a tragédia de 2017. Os nossos corações confrangem-se perante esse espectáculo dantesco. Há vítimas a lamentar, entre bombeiros e civis. Estradas cortadas, ainda bem. Essa parte foi aprendida para que não aconteça o mesmo de há sete anos, com os carros enfeixados uns nos outros naquela que ficou conhecida como a estrada da morte. Fumo preto, céus cinzentos e escuros, cores laranja, que metem medo a quem vê de longe. 

Os que lá estão que Deus os ajude. 

O quintanista* e a pastilha ou o comportamento e a avaliação (1)

"Olha a pastiiiilha! Não me entres nas aulas com a pastilha na boca". De entre as várias recomendações diárias do encarregado de educação* esta é sacramental. Mas o quintanista despreocupadamente:"Oh!Oh! Tenho cá uma técnica que ninguém me apanha". "Não quero saber de técnicas. Pastilha fora da boca, já."

Contudo, naquele dia, a pastilha elástica, esquecendo cumplicidades passadas, obedeceu apenas à força da gravidade. No preciso momento em que o professor dizia ao quintanista para intervir na aula, a pastilha descola-se-lhe do céu da boca e espeta-se-lhe num canino. Ir lá com o dedo é impensável. O melhor é começar a dizer alguma coisa antes que o professor desconfie.

Mas este, olhos experientes de algumas décadas nessas andanças, verifica que há ali qualquer coisa de estranho. Embora o quintanista esteja ainda na idade, quase, da mudança dos dentes de leite, não se lhe ia crescer um assim de repente e com características draculianas. Pois, não havia dúvidas. Uma pastilha!!!



E o nosso quintanista, mastigador entendido e especializado de pastilhas elásticas lá teve de interiorizar, escrevendo cinquenta vezes que não podia comer nas aulas. Bom, aquilo era um eufemisno. Não estava propriamente a comer e nem era essa a sua intenção. Mas, enfim, bem lá no íntimo sempre soube que poderia ser apanhado.

E agora era só esperar pela pastilha. Além da tal interiorização que lhe deixou uma caimbra nos três dedos com que segura a esferográfica, tinha de se haver com o "Não te disse???!!!..." do encarregado de educação, com o sinalzinho de mau agoiro inscrito na sua ficha e esperar ainda pela pancada no final do período lectivo. Nem o facto de ter seguido uma técnica vivamente recomendada presentemente que é o de utilizar, reutilizar e reciclar, lhe poderia valer. Sim, porque a ideia era recuperar a dita no final da aula.

Olinda

(1998)

Continua amanhã ( 2ª e última parte)


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Texto, na pele do "quintanista", interpretando um pouco as experiências da minha filha, nessa idade. 

imagem: pixabay

caimbra - não consegui pôr o til no i

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

há qualquer coisa ...de mágico em nós

 já sabias que mais cedo ou mais tarde haveria de escrever um texto meloso como este; porque constantemente fazes questão de me lembrar que todos os dias devemos empenhar-nos na construção de um mundo só nosso - não de uma casa, não de uma conta bancária, não de uma mentira, mas de um mundo - um mundo inteiro cheio de coisas imensas, cheio de amor, cheio de tudo aquilo que conseguirmos meter lá dentro, cheio de vida; porque daqui a uns anos vamos com certeza ser capazes de nos comover com esta história; porque esta é a história que vamos querer contar aos nossos filhos (e que vamos querer que eles se encarreguem depois de contar às gerações futuras), esta é a história que nos emociona sempre que pensamos na grande probabilidade da mesma se vir a realizar, e nos faz chorar – mesmo quando não há nada para chorar – ao imaginarmos a remota hipótese dela não se vir a concretizar; porque a verdade é que todos os dias devemos ser capazes de chorar por tudo e por nada – saber chorar é uma qualidade, tentarmos ser felizes porque o que importa é sermos felizes – saber ser feliz também dá trabalho – e aceitarmos o que a vida nos dá e desejarmos sempre mais e mais felicidade, agarrarmos a vida pela mão, deixarmo-nos conduzir por ela, não permitimos que nada nos escape: esta é a nossa vida e não há-de haver outra; um dia saberemos reconhecer a importância de tudo isto quando olharmos para trás e nos revirmos: se ainda agora podemos constatar que o amor não encolheu, é porque há qualquer coisa de mágico e de imortal nesta nossa simples pretensão, há qualquer coisa de mágico em nós

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mg 2013








 


Ver no Xaile: aqui

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Título do texto: "há qualquer coisa"
Imagem: pixabay

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Que fazer?!

 


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Que fazer?!
Eu não compreendo o Amor,
eu não compreendo a Vida
Mistérios insondáveis,
Formidáveis,
Mistérios que o Homem enfrenta
Mistérios de um mistério
Que é a alma humana …

Eu não compreendo a Vida:
Há luta entre os humanos,
Há guerra,
Há fome, e há injustiça imensa:
Há pobres seculares,
Aspirações que morrem …
Enquanto os fortes gastam
Em gastos não precisos
Aquilo que outros querem …

Eu não compreendo o amor:
Amamos quem sabemos impossível
Sentir por nós aquilo
Que tanto cobiçamos …

A Vida não me entende,
Eu não compreendo a Vida.
Quero entender o Amor,

E o amor não me compreende!

Amílcar Cabral


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– “Emergência da poesia em Amílcar Cabral” (30 poemas).. [recolhidos e organizados por Oswaldo Osório]. Colecção Dragoeiro. Praia: Edição Grafedito, 1983. daqui


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Nesta data em que se assinala o Centenário do nascimento de Amílcar Cabral, esta pergunta "Que fazer?" impõe-se. Sim, o que fazer neste mundo tomado pela intolerância e desamor? o Homem que defendia a concórdia encontra-se na escrita deste poema envolvido pela dúvida e descrença. Ontem como hoje, parece não haver evolução alguma no comportamento ou modo de pensar da Humanidade.
Vida e Amor...  




Eneida Marta
Africa Tabanka



Amílcar Lopes da Costa Cabral (Bafatá, Guiné Portuguesa, actual Guiné-Bissau, 12 de setembro de 1924 — Conacri, 20 de janeiro de 1973) foi um político, agrónomo e teórico marxista da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Ver mais aqui


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Imagem: Net

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Onde está a luz?

 


Era Dezembro, no seu princípio. E nós éramos quantos? Eu, marido, filha, marido da filha, uma irmã, um casal de sobrinhos...Portanto, sete. Planeámos visitar a ilha de rochas sumptuosas, Santo Antão. Um dos meus primos cedeu-nos a sua casa em Porto Novo. Tomámos o barco em S.Vicente, chegámos ainda a tempo de tomar o pequeno-almoço num restaurante perto do porto. Fomos deixar as nossas coisas em casa e seguimos com o meu sobrinho a conduzir. Subimos até ao alto da Corda, onde o clima muda repentinamente, fresco quase frio, árvores frondosas, ambiente verdejante, e, ao longe, as nuvens davam-nos a ilusão de mar imenso. Visitámos vários sítios, subimos e descemos por caminhos impensáveis. Tinha estado a chover, as estradas quase aéreas mostravam vestígios de derrocadas. Houve momentos em que nos sentimos em perigo e a tracção a quatro rodas fez-se necessária. Voltámos ao Porto Novo pela tardinha, cansados e transpirados. Todos de banho tomado, o pessoal mais novo encalorado ligou ventoinhas, televisão, alguns puseram-se a ouvir música. E eu, tipo ave de mau agoiro: cuidado, não conhecemos a casa... E eles na maior descontracção, com a ideia de repor energias. De repente, um apito ininterrupto, um alarme estrepitoso soou e todos espantados à procura da sua proveniência. Fomos dar com um quartinho minúsculo, talvez 2x2m, se tanto, entre a sala e os quartos, com uma instalação de fios bem pregados à parede que desapareciam pelo tecto. Do lado direito um contador que marcava 25%. 




Todos se interrogavam: o que será isto? Os especialistas de serviço, todos, a olhar para aquilo sem perceber nada, tudo em pânico pois receávamos ter dado cabo de alguma coisa... Os dois quartos foram destinados tacitamente a dois dos casais, a minha irmã encontrou um divã desdobrável que preparou na sala de jantar, filha e marido destinaram algumas almofadas que iriam colocar no chão da sala para dormirem. Ainda com aquilo a apitar, dirigi-me ao meu quarto premi o interruptor, ouviu-se um clique e foi escuridão total. Agora tudo às aranhas, ninguém sabia onde estavam as coisas. Às apalpadelas lá nos deitámos... Não passou muito tempo quando oiço a filha ao meu lado, aflita: mãe mãe passou-me um bicho pela cara acho que é um escaravelho, não quero ficar ali. Ajeitei-me para o meio da cama, ela deitou-se e, durante a noite, eu enchouriçada entre a filha e o pai sem poder respirar até que a manhã raiou (não: a manhã não raia, diz o poeta). A seguir, a utilização da casa de banho, com os banhos, a higiene, o pequeno-almoço atribulado...nisto chegou a senhora encarregada da casa e nós a prepararmos as nossas coisas para seguir viagem, para o outro lado da ilha. Muito embaraçados contámos o que tinha sucedido com a luz, o alarme, a atrapalhação e ela descontraidamente dirigiu-se ao quadro da luz e disse: Oh, quando aquele contador marca 25% é porque a energia solar acumulada vai esgotar e então liga-se a luz da Companhia. E foi o que ela fez. Simples.

 



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Imagens: net

Video: Cesária Évora: Nho Antone escaderode

sábado, 7 de setembro de 2024

Réstia de mim





Bates a todas as portas
Na busca incessante
de uma réstia de mim,
Nas minhas raízes
No meu rebento
No meu sofrer

Mas sempre prudente
Sussurante e felino.
Não fazendo perigar
O inexpugnável núcleo 
Que tão bem construíste
À custa das nossas Vidas!

Dinola Melo







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Imagem: pixabay

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Sob a magia do ritmo

 


Dançava e dançava. Os meus pés não tocavam no chão. Sentia-me leve como uma pluma. A técnica aliada à agilidade, a ginástica e o muito treino faziam-me voar. Com graça. Com donaire. Até me sentia orgulhosa de mim. Com elegância atirava ao ar a fita que cabriolava e fazia círculos no ar dando-me tempo para tocar o solo, quase não o tocando, uma perna dobrada, outra atirada ao ar gentilmente, a arte em todos os gestos. Um salto revoluteado leva-me ao infinito para, a seguir, dar um salto sobre mim mesma e cair de bruços já com a cumplicidade da fita a pousar sobre a minha mão direita. Apanho-a e num acto de mágica enrolo-a em mim, depois desenrolo-a, dou um salto mortal e ela continua companheira e pousa suavemente sobre o meu ombro esquerdo... Palmas entusiásticas troam os ares. Um pouco desconcentrada retomo a minha evolução, noblesse oblige. Até nem me interessava muito a pontuação. Entregava-me a essa execução e sentia-me realizada. A competência do meu corpo e a elasticidade levavam-me em apoteose...De súbito, uma estridência, um susto, o despertador soa.


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imagem: pixabay