Ó São Pedro, pedra viva da Igreja fundada por Jesus Cristo, Vós que fostes chamado pelo Senhor para ser pescador de homens e mulheres, Vós que dissestes: “Senhor, a quem iremos? Pois só Tu tens palavras de vida eterna”, Vinde em meu auxílio com vossa intercessão junto a Deus, Dando-me coragem para seguir o vosso exemplo de amor fiel a Cristo Anunciar a Boa Nova na família, na comunidade, no trabalho e em toda parte.
Ó São Pedro, Vós que fizestes a mais bela declaração de amor: “Senhor, tu sabes que eu te amo”, Ensinai-me, hoje, o caminho da justiça Para que eu tenha saúde e paz E alcance a graça que Vos peço.
(Aqui se faz o pedido).
Amém. *
***
Tenho eu já falado, neste ano, de Santo António e São João, também o faço em relação a S.Pedro Apóstolo, assim chamado para se distinguir de outros Santos com o nome de Pedro. A oração acima mostra-nos a sua qualidade de pescador, vendo-se assim a sua importância nos locais onde a faina piscatória faz parte do quotidiano.
É a 29 de Junho, portanto hoje, que se festeja este santo popular sendo feriado municipal em Póvoa de Varzim, Sintra, Montijo, Évora, Castro Verde, São Pedro do Sul, Seixal, Macedo de Cavaleiros, Ribeira Grande, Felgueiras e Bombarral.
Mesmo não sendo feriado municipal em Espinho opto por transcrever o que os espinhenses têm a dizer sobre este dia e este Santo:
Ao longo dos últimos anos, a Festa de S. Pedro tem-se assumido como uma das grandes romarias do concelho.
A Capela de S. Pedro foi construída por iniciativa de alguns espinhenses e com donativos de residentes em Espinho e em Matosinhos. Inaugurada no ano de 1942, foi benzida pelo Reverendo Padre Amadeu de Vasconcelos. Todos os anos, a 29 de junho, a povoação piscatória festeja o seu Padroeiro e Patrono.
O Desfile das Rusgas a S. Pedro e a majestosa Procissão, que percorre as principais artérias da cidade saindo da Capela, são os pontos altos desta Festa que traz muita gente até Espinho.
Muita música e festa de arraial são a componente profana desta Festa, uma vez mais, dedicada às lides do mar. aqui
***
A tradição católica considera São Pedro como o primeiro Papa. O martírio de São Pedro ocorreu em Roma, sendo crucificado de cabeça para baixo na Colina Vaticana, provavelmente no ano de 64 d.C.
Na Bíblia, a trajetória de São Pedro pode ser lida nos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Além disso, ele escreveu também duas epístolas e há registo de sua vida nos livros de Atos dos Apóstolos e nas epístolas de Paulo.aqui
***
Telefonou-me há pouco uma amiga a falar-me da Festa de S.Pedro no Montijo, com um extenso programa que já vem do dia 27 e vai até 03 de Julho. Fui ver o site que diz:
Um misto de animação, cor, música, dança e muita alegria marcam os vários momentos de grande importância na vida dos cidadãos e dos milhares de visitantes que, há vários anos, vêm conhecer a nossa cultura e tradição, participando e fazendo parte integrante das nossas festas.
Destaque para as procissões fluvial e noturna, a bênção dos pescadores, à queima do batel, nunca esquecendo as touradas, largadas e os comes e bebes.
Ó Jon, ja'm txgá! Ó Jon, ja'm txgá! (Ó João, já cheguei! Ó João, já cheguei!), gritam mulheres de trouxas na cabeça, enfeitadas com toda a espécie de flores de papel multicor, ramos entrelaçados, meneando-se ao som de tambores que ressoam pelo vale, ritmando
dançarinos ta kolá S.Jon, no seu jeito sensual, dois passos atrás a tomar balanço para o contacto, recomeçando até o suor
escorrer pelos corpos.
Cavalos montados por homens bem aperaltados, ensaiam passos como se gente fossem, batendo os cascos na calçada, marcam a cadência destes festejos a um tempo sagrados e profanos.
Pois, a imagem de São João Baptista acaba de chegar à capela, vinda da Ribeira das Patas, em andor, pelos ombros de moços musculosos, de uma distância de 23 quilómetros, palmilhados como manda a lei, e acompanhada por multidões.
Todo esse percurso feito no mesmo registo de festa, mulheres e homens de rosários ao pescoço até à cintura, confeccionados com prentem (espécie de pipocas) ou mancarra enfiados em fio de coser, com flores a dar-lhes vida.
E já dos planaltos, das montanhas e dos vales, tinham surgido os madrugadores desde os princípios de Junho, para festejar o Santo António, que é da Vila das Pombas, mas em Porto Novo também dá um ar da sua graça, com os navios engalanados que andam pelos pés dos foliões.
E também para armar as suas tendas para pernoita, os que não têm parentes na terra. Mas as barracas também são armadas para venda de
carne de porco assada, torresmos, canja de galinha bem condimentada, peixe frito, cachupa guisada, aguardente, ponche, sucrinha, e tudo o que o que manda a tradição.
No dia 24 de Junho a missa, como não podia deixar de ser, com a correspondente procissão. No dia seguinte é o regresso às respectivas casas que distam muitos quilómetros do local dos festejos.
Mas, será que não falta nada? Também de tradição que no São João tem de haver briga, amigável, entre os foliões. Já de partida, bastante alquebrados, lá engendram uma briga, mesmo que já estejam bastante avançados no caminho de regresso.
*
As festas populares de São João Baptista em Porto Novo, antigamente, eram espontâneas. É disso que estive a falar nesta pequena prosa.
Na actualidade, já têm organização e toque institucional, como no video acima.
===
Por cá,
no Porto, noite de festa braba. Alhos-porros, substituidos por martelos de plástico, ramos de cidreira e de limonete, lançamento de balões de ar quente, fogo de artifício, fogueiras, manjericos...
Mas também em Braga e noutros locais.
Enfim, nada pode faltar.
Desejo-vos um São João animado, meus amigos de cá e de lá.
Abraços.
Olinda
===
NOTA:
APENAS HOJE, DIA 25, PUDE PUBLICAR OS VOSSOS COMENTÁRIOS, POR NÃO TER TIDO COMIGO O COMPUTADOR.
A TODOS OS QUE PASSARAM POR AQUI, A MINHA GRATIDÃO.
A Revista Visão na sua edição de 15/6 a 21/6, apresenta oito escritores/poetas do Século XX, que considera um pouco esquecidos.
São eles:
Aquilino*, Torga, Régio, Sena, Namora, Sérgio, Nemésio* e Fonseca (são apresentados na capa da revista assim, num primeiro momento, sem o respectivo apelido)
E diz:
Foram no Século XX referências culturais, éticas e políticas, mas hoje são quase ignorados pelas novas gerações. A sua memória não pode cair no esquecimento.
Pela parte que me toca, (no que se refere à divulgação) têm sido todos publicados neste blogue o que não obsta a que continue a fazê-lo.
Assim, todos os meses vou publicar um deles, começando desde já com
Manuel Lopes Fonseca, mais conhecido como Manuel da Fonseca (1911-1993) foi um escritor (poeta, contista, romancista e cronista) português. ...
A 25 de outubro de 1983, foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada.
Em sua homenagem, a Escola Secundária de Santiago do Cacém denomina-se Escola Secundária Manuel da Fonseca e as bibliotecas municipais de Castro Verde e Santiago do Cacém, Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca.
Quando um homem quiser
Poema de
Ary dos Santos
Boa semana, amigos.
Olinda
====
Poema e imagem - citador
*Aliás, todos são referidos pelos apelidos, exceptuando-se Aquilino Ribeiro e Vitorino Nemésio.
Como devem estar lembrados, ou talvez não*, começámos a descida para a Ribeira Grande, o que quer dizer que, depois de subirmos até ao topo a partir de Porto Novo, iniciámos a descida para o outro lado da ilha. A descer todos os santos ajudam, diz o povo, mas neste caso é preciso pulso firme. Um dos meus sobrinhos ia ao volante do Jeep e parecia bem naquele papel.
Parámos na Povoação onde almoçámos. Devo dizer que não foi dos meus melhores momentos à mesa. Cabo Verde é famoso pelo bom tempero mas ali, naquele restaurante, o cozinheiro parecia ter sido possuído pelo espírito de algum chef indiano pois tudo sabia inexplicavelmente a caril... e o que eu gosto de caril. Nesse dia não estava para aí virada. Do meu frango "estufado" só comi o acompanhamento que me soube muito bem, pão di terra (mandioca, batata doce, banana verde). O empregado pareceu-me bastante contristado: então não comeu nada?
Continuámos viagem em direcção à Ponta do Sol. Enquanto fazíamos a travessia na estrada quase suspensa das rochas, com o mar lá em baixo, de entre nós elevaram-se vozes, em especial a da minha irmã mais velha, voz de ouro, entoando canções antigas relacionadas com alguns pontos da ilha de Santo Antão, neste caso a Ponta do Sol:Da minha terra Ponta do
Sol/Guardo comigo saudade imensa/Por isso a quero cantar baixinho/Com a melodia que o amor entoa./Ponta do Sol meu terno
berço /Sinto que as tuas rochas altivas/Gritam nos ares no céu de anil/Lugar mais lindo não pode haver.(...) E seguiram-se mais dois pares de quadras igualmente lindas.
E, claro, todos nós fazíamos coro. Aproveitando a inspiração veio a vez de "Paúl jardim florido/de águas cantantes nas bananeiras" ainda que não tivéssemos ainda passado pelo Vale do Paúl e também "Janela" que, por fim, não tivemos oportunidade de visitar. Mas, ouçamos este cantor de voz maviosa que, com largos gestos, canta todas as antigas mornas dedicadas à ilha de Santo Antão, Homero Fonseca. A dificuldade está na escolha. Mas, lá tem que ser, trago-vos a morna que engloba todas as outras chamada: "Santo Antão"* ou não, opto por "Paúl", tendo assim oportunidade de mostrar algumas imagens desse lindo vale:
Antes de chegarmos ao Paúl andámos pela Rua das Pombas onde tudo acontece em termos institucionais. Soube que já foi sede de um Concelho imenso abarcando o lado da ilha donde viemos, incluindo Porto Novo que se emancipou em 1961, quando Adriano Moreira passou por lá e concedeu-lhe o estatuto de Concelho. Nessa altura, havia um grupo de jovens cantores que o encantaram, musicalmente falando, e trouxe-os para cá onde eles tiveram a oportunidade de gravar discos.
Este texto já estava escrito há muito tempo. Não cheguei a publicá-lo. Agora, vendo os rascunhos, que são muitos, deparei-me com ele. Data da minha viagem a Cabo Verde, em 2016/17.
Hoje, Dia dos Enamorados no Brasil, véspera do Dia Santo de António, feriado em Lisboa, Dia dos Casamentos de Santo António, noite das Marchas Populares. Motivos mais do que suficientes para festejarmos e darmos rédea solta ao Amor.
Falei aqui, em tempos, sobre a vida de Santo António, de Lisboa para uns, de Pádua para outros, nascido Fernando, que foi um Doutor da Igreja e viveu na viragem dos séculos XII e XIII.
Santo António tem a fama de santo casamenteiro e então, neste dia, dá-se o evento religioso mais tradicional e relevante da capital, realizado desde 1958.
Presentemente, são 16 os casais que se unem em matrimónio, uns na cerimónia religiosa, outros na cerimónia civil, proporcionando uma enorme felicidade às suas famílias e a todos os lisboetas que seguem estes enlaces, quer nas ruas da cidade, como através da transmissão televisiva.*
Com o mês de Junho próximo, não há muito tempo, lembrei-me de escrever este pequeno texto para um dos blogs da amiga Rosélia, em que pedia a participação dos leitores para um dos seus desafios:
A NOIVA DE SANTO ANTÓNIO
Via-a passar todos os dias. De passo estugado e rosto sério. Nem tinha coragem de lhe dirigir a palavra. Contudo, seguia quase ao seu lado e iam para o mesmo sítio. Até que um dia se resolveu a falar-lhe.
_Desculpe, sabe dizer-me qual é o transporte para o Alto da Pina.
Com um meio sorriso a iluminar-lhe as feições respondeu:
_A sério? Vamos todos os dias para o mesmo lado.
Sabe tão bem quanto eu."
Foi o pretexto para deixarem de ser estranhos. Em amena conversa caminharam lado a lado. Num dos passeios ele viu uma florista. Correu e comprou uma rosa e ofereceu-lha. Ela, toda corada, agradeceu-lha e prendeu-a nos cabelos.
Todos os dias faziam o mesmo percurso para o trabalho e chegaram à conclusão de que não poderiam viver um sem o outro.
Casaram no dia das Noivas de Santo de António. (Olinda)
E para assinalar esta data em que se festeja este Santo popular, a seguir uma quadra do nosso grande Poeta, Fernando Pessoa:
Santo António de Lisboa Era um grande pregador, Mas é por ser Santo António Que as moças lhe têm amor.
No dia de Santo António Todos riem sem razão. Em São João e São Pedro Como é que todos rirão?
À noite temos as Marchas Populares. Qual delas ganhará? Alto do Pina?
O importante é festejar, comer umas boas sardinhas assadas, febras na brasa e mais o que vier.
Não me tires a rosa, a flor de espiga que desfias, a água que de súbito jorra na tua alegria, a repentina onda de prata que em ti nasce.
A minha luta é dura e regresso por vezes com os olhos cansados de terem visto a terra que não muda, mas quando o teu riso entra sobe ao céu à minha procura e abre-me todas as portas da vida.
Meu amor, na hora mais obscura desfia o teu riso, e se de súbito vires que o meu sangue mancha as pedras da rua, ri, porque o teu riso será para as minhas mãos como uma espada fresca.
Perto do mar no outono, o teu riso deve erguer a sua cascata de espuma, e na primavera, amor, quero o teu riso como a flor que eu esperava, a flor azul, a rosa da minha pátria sonora.
Ri-te da noite, do dia, da lua, ri-te das ruas curvas da ilha, ri-te deste rapaz desajeitado que te ama, mas quando abro os olhos e os fecho, quando os meus passos se forem, quando os meus passos voltarem, nega-me o pão, o ar, a luz, a primavera, mas o teu riso nunca porque sem ele morreria.
_Tua mãe disse que, se tivesse desconfiado que era para político,
nuncamente jamais do mundo em nenhum tempo
na vida te teria posto na escola,*
Vai à cozinha devolver a chávena. Encontra sua sogra, Dona Alice, a chorar acidamente diante de uma cepa de cebola para a canja, faz-lhe a piada habitual, como vai Alice no País das Buganvílias?, ela, De saúde, graças a Deus, passa, vai lavar a xícara no alguidar ao lado, despede-se e sai. O cheiro do refogado acompanha-o, lembra-lhe os perfumes das casinhas onde morou com a mãe em Cabo Verde, o lírio do vaso do quintal, os coentros apolejados sobre o xerém, a erva-cidreira mascada à boquinha da tarde, o funcho pisado no almofariz de pedra, a hortelã vaporizando ao lume, o manjericão raspado pelas cortinas das janelas, o orégão e o alecrim em borbulhas de cozimento, o zimbro e evolar-se do litro, as folhas de louro penduradas no espeto, a manjerona doida no travesseiro, a arruda queimada com aguardente, o eucalipto para afugentar as bruxas, o tomilho ardido para curar o peito fechado, a alfazema em unguento sobre a ferida da canela, a erva-príncipe elegante e fresca na mureta do pote; ah, o jasmim, o rosmaninho, a salsa, o poejo, a noz-mocada, o alho, e o café, outra vez o café, que teima na língua como amargor de último dia. Saudade desalmada de tudo isso, e a triste sensação de que ele, Amílcar, é para sua mãe o filho que ela tem e quase não tem, teve e nunca teve, ou coisa assim, delicada de explicar, uma mistura de dádiva e dívida, ou talvez aquilo que em África se designa por parir para servir o mundo. Afinal, ele, Homem Grande, nunca deu à mãe a vida melhor que tantas vezes pronunciou à luz do candeeiro sobre a juntoura, nas suas humildes casas de uma porta e uma janela.
Pgs 59/60
Com o tempo, de tanto passar a ferro, Mãe Iva adquiriu umas cãibras que lhe deixavam o corpo como ouriceiro atiçado, e ele, Amílcar, catorzeanino ainda, acordava nas madrugadas para esfregar-lhe cânfora e óleo de purga nas costas, porque suas mãos pequenas e macias acalmavam, dizia-lhe a mãe. Depois da terapia ele, Amílcar, estendia-se noctâmbulo a contemplar a imagem de Santo António a dançar na flâmula do candeeiro por entre as fraldas da cortina; filosofava com a moringa transpirada em cima da janela; hauria o cravinho-da-índia que vinha da tigela de comida para o dia seguinte; arpejava à distância as tiras das cadeiras de mogno da casa de jantar; alucinava-se com o torresmo e o peixe frito nas montras da vitrine; catava o som aleatório dos insectos voadores; divertia-se com a rênquea de garrafas vazias e seus pescoços elegantes em cima da mesinha; ria do pote bojudo feito um bispo no canto da sala; distraía-se a destrinçar os vestidos das gémeas nos cabides; e vogava madrugada adentro, consoante a ondulação da chama a fritar os bichos de luz em cima da banquinha da cabeceira. Amanhecia.
Pg 70
E lembra o dia que Mãe Iva apareceu na Achada Falcão, sem aviso nem licença, para resgatar suas crias do pai e da madrasta. Juvenal nem sabia que Mãe Iva tinha deixado a Guiné, e ficou empedrado na porta a olhar a pessoa desconhecida que roçava as crianças num anúncio de temporal...
pg 60
A casinha de Ponta Belém, na cidade da Praia, para onde foram morar, era como um agasalho de pedra. Chegaram à noite, lembra, vencidos de oitenta quilómetros e sete horas de mulas. Mãe Iva sentou-se com as gualdrapas da saia arrepanhadas entre as pernas, mandou as crianças acomodarem-se no chão, não tinha móveis, penintenciou-se pela demora em vir ao encontro de seus filhos, percalços, e assegurou:
_Podem crer que, deusadiante, só a morte nos separará...
Pg 61
Era Setembro, lembra, Mãe Iva cozeu o bolo de mandioca, fincou-lhe em cima uma vela de Igreja, confeccionou uma pucarinha de água de açúcar, chamou os amiguinhos e as amiguinhas recentes da cidade, e fez a um dos filhos a sua primeira festa de aniversário. Foi para ele, Amílcar: dez anos de vida. Nunca mais se esquece. Em Outubro, Mãe Iva vendeu e colocou em penhor todos os seus valores, de brincos a roupa de cama, costurou um par de uniformes, remendou umas meias furadas, levou à forma os sapatos e, numa manhã cacimbada de cânticos de pássaros, acordou seus dois rapazitos, Ivo e Amílcar, lavou-os e levou-os para a primeira chamada à escolinha da cidade, rogando-lhes pelo caminho: "Estudem, especialmente tu, Amílcar, para não perderes acesso ao liceu, lembra-te que é até os treze anos". Ele, Amílcar, obediente e compromissado, cursou em três anos os quatro requeridos e terminou a quarta classe da instrução primária com a idade de doze anos, dez meses e dezassete dias. Mãe Iva ficou tão enaltecida que deu aos dois rapazes dois meses inteiros e o mundo inteiro para brincarem...
Pg 62
Um dia, nada te faltará, mamãe...
Mãe Iva só lhe devolveu a resposta trinta e seis anos depois, por intermédio de um amigo, que lhe fora levar de presente do filho uma notícia e um rosário. *
Pg 63
Trinta e seis anos depois, com quatro meses de diferença apenas, acorda de um apagão e percebe que uma bala acaba de lhe furar o ventre, e alfineta-lhe tanto a barriga como a memória, replicando todas as picadas de agulha de quando Mãe Iva às pressas lhe franzia as pregas das calças no corpo. Era uma casinha em São Vicente, moradia igualmente de uma porta e uma janela, ambas de batentes flácidos e dobradiças ronhas,...
Pg 67
Onde é que eu estou?,
pergunta à Lua.
O simples pronunciar já lhe dói impiedosamente. Está coberto de uma coagulação arrefecida e pastosa, sente uma pérola de suor a escorrer-lhe sob a gola direita, e seu fígado late como um vulcãozinho de estimação. A custo golfa um soluço de dor, tosse partindo todas as costelas, tendões e músculos, e resmunga com dificuldade:
_Deram-me um tiro
Pg 181
====
Ele, Amílcar, Homem Grande, sabe que depois da sua morte persistiria a pergunta sem resposta cabal:
Quem matou Amílcar Cabral?
E Mãe Iva, no funeral, apenas o espírito. Não o corpo.
Todos nós vivemos os dias tormentosos da pandemia em que apenas os animais saíam à rua, conquistando-a definitivamente. Dias em que os passarinhos chilreavam nas cidades, livres do barulho que dantes reinava. Em contrapartida, os meninos em idade escolar foram confinados entre quatro paredes, tendo-lhes sido retirado o direito de correr, saltar e brincar em espaços abertos. Jardins e parques definhavam, privados dos seus risos e gritos de alegria de viver. Sem falar nas escolas e recreios que ficaram no mais triste abandono.
A acrescer a estes, temos os outros, cuja gestação terminaria nesse ano de 2020 e nos seguintes, enquanto durou a pandemia. Presos em casa, no ventre das suas mães, veriam a luz do dia em hospitais sobre-lotados, médicos e enfermeiros com aspecto de extraterrestres, e restrições sem fim. Os pais no maior stress, de máscara, durante três anos, a calcorrear centros de saúde e hospitais para o controlo pós-nascimento e sempre que surgisse algum problema com os pequenos infantes.
O que me preocupa, entre outras coisas, é a forma e a vontade de avaliar o que se passou pela cabeça destes meninos em idade pré-escolar e escolar. E também a visão do mundo destes bebés que passaram os seus primeiros tempos isolados. Assim, ocorre-me esta questão:
Em que medida o medo e a insegurança que pairavam no ar, e que tolhiam tudo e todos, os terão afectado em termos de comportamentos futuros?
Sendo a Pandemia um problema de saúde global, também é de toda a conveniência que este assunto seja encarado globalmente.