terça-feira, 22 de agosto de 2017

Lugares da infância






Lugares da infância onde
sem palavras e sem memória
alguém, talvez eu, brincou
já lá não estão nem lá estou.

Onde? Diante
de que mistério
em que, como num espelho hesitante,
o meu rosto, outro rosto, se reflecte?

Venderam a casa, as flores
do jardim, se lhes toco, põem-se hirtas
e geladas, e sob os meus passos
desfazem-se imateriais as rosas e as recordações.

O quarto eu não o via
porque era ele os meus olhos;
e eu não o sabia
e essa era a sabedoria.

Agora sei estas coisas
de um modo que não me pertence,
como se as tivesse roubado.

A casa já não cresce
à volta da sala,
puseram a mesa para quatro
e o coração só para três.

Falta alguém, não sei quem,
foi cortar o cabelo e só voltou
oito dias depois,
já o jantar tinha arrefecido.

E fico de novo sozinho,
na cama vazia, no quarto vazio.
Lá fora é de noite, ladram os cães;
e eu cubro a cabeça com os lençóis.

 In: "Um sítio onde pousar a cabeça"

       (1943-2012)


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Poema: Citador
Imagem:pixabay

10 comentários:

  1. Também eu já lá não estou, não estão também aqueles que tanto contribuiram para que esses momentos de infância sejam recordados tantas vezes; o lugar continua lá, a casa também, mas tudo tão diferente, assim como diferentes estamos todos nós, nós que fizemos daquele lugar um recanto de eleição. Não revejo o meu quarto há muito, muito tempo, nem os outros
    dois e nem a mesa pequena suficiente para os quatro que nela se sentavam felizes às refeições, refeições não muito fartas, mas regadas a diálogo e muito, muito carinho o que faziam delas momentos tão especiais que ainda hoje os sinto presentes no meu coração. Não quero entrar naquela casa, pois o vazio dela entristece-me, mas conservo-a de pé, como de pé estão ainda aqueles que a construiram com tanto sacrificio e que lutam contra as marcas do tempo vivido com muita coragem. O tempo passa, deixa os seus vestigios, em nós, nos outros à nossa volta e até nos lugares. Como está diferente o lugar da minha infância, Olinda!!! Como gostei de viajar até ele com este belo poema, amiga!!! E como te agradecer por ele? Só deixando-te um forte abraço e oferecendo-te a minha sincera amizade. Obrigada!
    Emilia

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  2. Como infelizmente me diz tanto este poema!
    Beijinhos :)

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  3. Manuel António Pina. Um poeta fantástico. Foi bom encontrar aqui este poema que me emocionou. Os lugares da infância sempre nos deslumbram e nos trazem à memória as pessoas e as pequenas coisas que vamos perdendo...
    Um beijo.

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  4. Sempre momentos especiais e tocantes recordar Manuel Pina...
    Beijinhos, Olinda.
    ~~~~~~~~~~~~

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  5. Olá, estimada Olinda!

    Estava eu aqui a pensar no título do seu blogue e duas "coisas" me vieram à mente: xaile, agora, ah, não, tão calor, mesmo de seda; guardo na minha memória e retina, a imagem de alguns xailes, nomeadamente o da minha avó materna, aquando da morte de um irmão dela e o xaile era preto (estávamos no Alentejo) e era pesado, não era de seda, e era inverno.

    Manuel António Pina tinha uma maneira mto sui generis de escrever, que até aprecio. Parece que a sua poesia fala connosco e esta é disso a prova. Ele que adorava e tinha gatos, fala de cães, que ladravam ... sim, é o que se ouve lá fora, qdo nos remetemos a algo, profundo, sobretudo se for passado.

    Tenho boas recordações da minha infância, dividida entre o Alentejo e Lisboa, desde os dois anos de idade, mas vivi em "várias" casas, desde a dos pais, à dos tios, da tia e à do avô (era a menina na mão das bruxas, Olinda, é isso mesmo, mas não fui neta única, mas fui mto preferida e mimada, tenho disso consciência), onde fui mto feliz com o Titó, nome que dei a um dos burros, pequenino, que por lá havia e dos ciganos guardo excelentes recordações, pke faziam-me festas, mas o colo era sempre o das ciganas. Coisas do meu amado avô!

    Contrariamente à casa de infância de MAP, as minhas, tal como o mobiliário delas ainda lá está e sempre que lá vou não me sinto só, pke embora mtos deles já tivessem morrido, há um odor no ar de felicidade, abraços, beijos e rosmaninho. É decerto carinho, pois! Tínhamos flores e coentros nos quintais e ainda lá estão, devidamente tratados. Eu fiquei com uma boa parte de tudo por herança e testamento e lá vou gerindo tantas casas e tantos afetos e mais as casinhas deles no cemitério, onde vou com alguma regularidade, para os "ver", falar com eles, dar-lhes conta das "coisinhas" deles e perguntar-lhes se posso mudar a cor de alguma divisão, fazer umas obrinhas, etc. Gosto da opinião deles, afinal, são eles os donos dos bens e têm opinião primeira sobre tudo.

    Minha querida, desejo-lhe dias bem felizes.

    Beijos com apreço e consideração.

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  6. As recordações que tenho
    Adentro dos pensamentos,
    São metas (que não desdenho)
    De tão preciosos momentos.

    Delicioso.


    Beijo
    SOL

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  7. Bela imagem, Olinda Melo!
    E lindo poema também.
    Postagem feita por quem
    Gosta de tudo que é belo.

    Dois traços em paralelo
    Miram uma porta, e além
    Existe um quarto que tem
    Conotação de um singelo

    Leito de amor ou um ninho
    Não para um ente sozinho
    Mas para o encontro que for.

    Ergo alto a taça de vinho,
    E saúdo Olinda! à caminho
    Da embriaguês por amor.

    Bela postagem! Parabéns! Grande abraço. Laerte.

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  8. Lugares da infância guardados nos confins da nossa memória.
    Uma escolha absolutamente linda!
    Beijinhos
    Maria de
    Divagar Sobre Tudo um Pouco

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  9. Tem tudo, este poema: cheiro, sabor, gosto, visão, tato; e muita nostalgia no bolo que se fez memória, com muito pouco doce...
    Uma obra prima do Manuel Pina.
    Bjinho, Olinda

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