Sento-me
então a olhar o rio,
os meus
pensamentos formam cardumes
que
contra a corrente se insurgem
mas as
águas são inexoráveis;
olhando-as,
a superfície cintila,
propaga-se
como se fossem notas
de um
piano na garupa de um cavalo
que se
dirige para o mar.
O rio
bebe as cores da cidade,
sobre
elas eu abro o coração
em que
te encontras, as colinas
emolduram
as raízes que à terra
nos
ligam. Para os meus olhos
é um
momento de pausa: as coisas
que
interrogo não resistem à maré,
não dão
respostas; perdem-se no mar
Mas este
rio
já foi
longamente folheado, nele
escrevemos
o romance de amor
que nos
deu uma casa,
nos
cortou o cabelo, nos afastou
das
rugas, nos entregou o azul
(tecido,
nuvem, divã, janela...)
o voo
das artérias, lugar do corpo,
portas
que nos amanhecem, espelho
onde
fazemos fluir a vida. Acordes
da
guitarra que forja o horizonte,
que guia
o sinuoso voo das gaivotas
e
acaricia a pele que rasga atalhos
no
interior dos sonhos. Estarei
vivo
enquanto me guardar
teu
coração. E no seu lucilar,
esta
água imita o fogo
que
devora sombras e escombros,
libertando
a asa que no sangue
respira.
A foz está próxima,
mas o
horizonte é o teu olhar.
No
leitor do carro, a guitarra flexível
sublinha
o que divago; os acordes
disparam,
encontram-me na trajectória
do seu alvo. Egito Gonçalves
1920-2001
Mais uma vez, sento-me a olhar o rio nas asas de palavras que voam por sobre a cidade, qualquer cidade, e desaguam na foz, qualquer que seja. Ao fim e ao cabo a foz está próxima mas o horizonte é o teu olhar. Tudo perto e tudo tão longe. Somente o pensamento atravessa fronteiras e desfaz amarras.
Mas, o corpo que é terreno não se dissocia completamente do que o rodeia. Durante a noite oiço a tosse que não pára. Já a oiço também durante o dia. Afino os ouvidos e pergunto-me: Donde virá? Há alguém que sofre aqui perto. Mas em que prédio? Qual a porta? Cá por casa indago. Talvez seja alguém que mora sozinho e precise de ajuda. Como resposta invade-me a preocupação. E resolvo. Vou bater de porta em porta.
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Poema: In: A Ferida Amável
Imagem: Pixabay
Muito lindo e cheio de poesia.
ResponderEliminarFernanda, é mesmo você, Menina?
EliminarEstive algum tempo sem notícias suas.
Depois fui ao seu blog e encontrei umas
coisas que não percebi.
Gostaria que me confirmasse o endereço
do "aleatoriamente".
Beijinhos
Olinda
Excelente, Olinda.
ResponderEliminarNão conhecia o autor...
Uma escolha muito interessante.
Gostei muito.
Beijinho.
~~~~
Muito obrigada, Majo.
EliminarCá a espero para, juntas, fazermos mais leituras como esta.
Bj
Olinda
Um olhar de recordação, um olhar introspectivo.
ResponderEliminarBela poesia que nos faz pensar.
🌿✿゚╮Bom fim de semana!
✿⊰ه° ·.Beijinhos.🌾 ه° ·.
Sim. Um olhar introspectivo que se projecta para fora.
EliminarBj
Olinda
Bate de porta em porta, minha amiga...talvez possas ver a minha angústia.
ResponderEliminarBelíssimo poema de um poeta que adoro, mas que vai sendo esquecido.
Beijinho
Não te faltaria, amiguinha. :)
EliminarBeijinhos
Olinda
E assin o nosso Egito Gonçalves
ResponderEliminarpermanece vivo
Boa partilha
Bj
"E aqueles que por obras valerosas /Se vão da lei da Morte libertando,"
EliminarAbraço
Olinda
Querida Olinda, que bonito poema e que bonita a decisão! Bonita e infelizmente improvável...
ResponderEliminarBeijinhos
(Não estive de férias, pelo contrário!)
Tem razão, minha amiga.
EliminarFelizmente já obtive a resposta, sem chegar a esses extremos. :)
Muito trabalhinho então, hein?
Bj
Olinda
E mais uma vez partilha um belo poema. Obrigado por isso.
ResponderEliminarUm abraço
Muito bom ter aqui vindo ler este poeta.
EliminarObrigada.
Bj
Olinda
Quando aqui passo aprendo sempre algo, mais um autor que não conhecia (eu sempre calhei mais para a prosa). Obrigada por mais uma maravilhosa partilha!
ResponderEliminarBeijinhos!
Olá, Catarina H.
EliminarNa verdade,temos um mundo imenso de grandes poetas.
Obrigada pela sua presença aqui no Xaile.
Bjs
Olinda
Não podemos simplesmente ficar a olhar o rio; de vez em quando faz-nos bem essa pausa para reflectir, para recordar, para tentar respostas a perguntas que nos inquietam; mas junto ao rio há uma cidade que vive e nela pessoas que nem sempre podem olhar o rio, nem sempre sabem que esse rio existe; há dores nelas, há pressas em busca de pão, há inquietudes que só elas entendem; temos que tentar o nosso melhor para que esse rio seja para todos, nem que precisemos de " bater em porta em porta"para descobrir de onde vem aquele sofrimento por nós sentido; poderemos pelo menos abrir a janela de par em par e carinhosamente mostrar o lindo rio que por perto corre. Adorei, Olinda e não conhecia nada deste poeta. Obrigada, amiga. Um beijinho
ResponderEliminarEmilia
Grandes verdades o teu comentário nos transmite. Se cada um de nós se mantiver virado para si próprio, sem olhar em redor, o mundo torna-se cada vez mais opressivo e egoísta.
EliminarObrigada
Beijinhos
Olinda
Eu, inicialmente, pensei que o final do post pertencia também a uma obra ficcionada, mas agora entendi que a Olinda estava mesmo a referir-se a uma situação concreta! Espero que tudo esteja melhor!
ResponderEliminarBeijinhos
Obrigada, M.
EliminarRealmente é uma situação concreta.
Penso que as coisas estão a melhorar.
Beijinhos
Olinda
As águas são uma metáfora irresistível, querida Olinda. Fiquei curiosa em relação a esse tossir... encontrou a quem pertence?
ResponderEliminarAbraço
Ruthia d'O Berço do Mundo
Sim, Ruthia, encontrei.
EliminarObrigada pelo seu interesse.
Beijinhos
Olinda
Involuntariamente, estou dentro deste poema, apenas não conseguiria expressar, em poesia, de forma tão bela e profunda, o que este estado de "estar sentado a olhar o rio" provoca. Excelente partilha.
ResponderEliminarRelevo, de forma assaz positiva, o texto que escreveste. Parabéns!
BJO, Olinda