quinta-feira, 30 de junho de 2016

Silêncio de Junho

Por que se esconde a voz
entre as pedras e a nostalgia,
o sereno, flutuante rasto 
do nenúfar,
a forma dos olhos
na claridade 
melódica?

como se veste
o silêncio?

De que frutos?


E Eugénio Lisboa diz-nos;

A resposta pode ser assim: veste-se de frutos como os que acolhe este livro. De frutos de uma visão genuína e nova que um discurso inventivo, alado e eficaz nos transmite. De frutos que nos surpreendem e fazem de nós, leitores, argonautas também das viagens de descoberta: do poeta que sabe falar-nos das "sagradas varandas do entardecer" ou nos deixa "suspens(os) de inadiáveis/deslumbramentos."

O livro:um dia qualquer em junho
O Poeta: eduardo bettencourt pinto

Ed.Instituto Camões - 2000

domingo, 12 de junho de 2016

O "Anjo Custódio do Reino"



Afonso Henriques terá tido a visão do Anjo, São Miguel Arcanjo, na Batalha de Ourique, dando-lhe forças para vencer cinco reis mouros. E, como sabemos, depois disso optara pela autoproclamação como Rei de Portugal. D. Manuel I, que tinha razões mais do que suficientes para dar graças ao Altíssimo pelo sucesso das descobertas, fizera as suas diligências para a instituição da festa do "Anjo Custódio do Reino", tendo Leão X autorizado a sua realização no terceiro domingo de Julho.

Consta que esta devoção terá, quase, desaparecido depois do Sec. XVII, surgindo em 1952 no calendário litúrgico português para a comemoração do Dia de Portugal, no dia 10 de Junho, data da morte de Luís Vaz de Camões.

Mas, também, ele aparece aos pastorinhos de Fátima, segundo as Memórias de Lúcia, convidando-os à oração e afirmando ser o Anjo de Portugal.


Interessante a força das lendas e dos mitos na crença popular, criando heróis e protectores que dão voz aos nossos anseios e aparecem nos momentos críticos. Qual será a representação actual desse Anjo? A par dessa força espiritual existe outra, a da unidade nacional que os republicanos, nomeadamente, através de Teófilo Braga, souberam ver em Camões quando em 1880 é proposta a comemoração do tricentenário da sua morte. 

De lá para cá, outras ideologias foram se apropriando dessa ideia, sendo de referir a do Estado Novo que lhe deu este nome: Dia da Raça. Nestes tempos da democracia conquistada em Abril de 1974, a festa do dia 10 de Junho intitula-se, desde 1978, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Tanto, num só dia! Mas, tudo bem, tudo isso, e muito mais, é Portugal. Logo, poderíamos concluir que 10 de Junho é, tão-só, Dia de Portugal. 


Os portugueses que vivem no estrangeiro são tão portugueses como os que vivem em Portugal, e se for eleito Presidente quero comemorar um 10 de Junho junto deles, no estrangeiro, para lhes prestar uma merecida homenagem”, disse Marcelo Rebelo de Sousa ao Expresso a 28 de novembro de 2015

Então, sendo 10 de Junho também dia do Anjo, onde ficaram os festejos destinados à sua figura de "Anjo Custódio do Reino"? Tudo bem, não estamos na Idade Média em que o sagrado e o profano andavam de mãos dadas: à présent, somos um Estado laico, com a devida separação dos poderes temporal e espiritual, ou seja, cada festividade no seu lugar. 

Mas, o povo é que sabe destas coisas. Não tarda nada e começaremos a ver uma versão actualizada desse Anjo no nosso horizonte, imaginário ou não, qui nous prend sous ses ailes.

bem precisados que estamos.

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Algumas Referências: aqui, aqui,aqui
Última imagem e citação:aqui
Vide: III Centenário da morte
de Camões (1880)

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Vem sentar-te comigo à beira do rio

Isso é o que diz Ricardo Reis a Lídia. E é o que me apetece dizer-vos a vós, meus amigos, nesta manhã clara. Um dia que promete, este. Muito calor e praza a Deus que, também, muito boa disposição para apreciar as coisas belas que se nos oferecem.

Pois, bem. Sentemo-nos à beira-rio, à beira-mar ou debaixo de uma árvore sempre e quando pudermos, sozinhos em contemplação, ou acompanhados o que é muito bom.




Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                   (Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
                   Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
                   E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
                   E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
                   Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
                   Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
                   Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
                   Pagã triste e com flores no regaço. 


Ricardo Reis, in "Odes"
(F.Pessoa)


Digamos como o Poeta, de mãos enlaçadas ou não, com aquele sentimento de cumplicidade em que, muitas vezes, nem são precisas palavras:

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, 
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, 
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro 
                   
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

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Poema: Citador 
Imagem: daqui


quarta-feira, 1 de junho de 2016

As crianças: oxalá cresçam felizes e em segurança




para uma canção de embalar

embalo a minha filha joana que acordou num berreiro.
a casa está às escuras, vou passando com cuidado
para não dar encontrões nos móveis, embalo esta menina
que se calou mas está de olho muito aberto e quer brincar,
e há um halo de luz parda a coar-se pelas persianas
e às vezes uns faróis riscando estrias a correrem pelo tecto.

levo-a bem presa ao colo, toda de porcelana pesadinha,
enquanto a irmã está a dormir meio atravessada nos lençóis.
ao chegar-me a outra janela vejo as luzes fugindo na auto-estrada
em direcção ao rio, a uma placa da lua sobre o rio,
e trauteio «já gostava de te ve-er», enquanto acendo o fogão
para aquecer o leite e embalo a minha filha e a outra está a dormir.

oxalá cresçam ambas airosas e bem seguras,
e possam ir na vida serenamente como os rios correm,
ou como os veleiros voam, ou como elas agora respiram
em cadências regulares neste silêncio táctil.
a meio da noite um homem acordou no sossego da casa
e pôs-se a cuidar do sono das suas filhas pequenas.

 

oxalá haja fadas benfazejas esvoaçando das histórias
de princesas felizes e potros azul turquesa, e forrem esta casa,
e pelas malvadas bruxas alegres sinos dobrem,
e estas meninas existam incólumes e puras no seu quente contentamento,
mesmo que o mundo vá girando numa ordem sobressaltada,
mesmo que os mares agonizem nos seus gonzos de chumbo.

lá fora os carros passam, ainda não é a manhã, só alta madrugada,
mas passam alguns carros, deve estar frio. e há passos no andar de cima
a minha filha teresa tosse e volta-se na cama, a minha mulher dorme,
mas a joana ainda não adormeceu e presta a maior atenção
e mexe-me na cara quando eu chego outra vez a «inda mal abria os olhos»,
já ouviu esta toada umas centenas de vezes e passa a mão pelo meu queixo

e aconchega a cabeça e as pálpebras começam a baixar-lhe
muito devagarinho e a pequenina mão abandona-se na gola do meu pijama
e há que dar ainda uns passos para cá e para lá,
a cantar uma sombra de modinha, para ela ficar bem adormecida,
e como da irmã, quando a irmã tinha esta idade, eu digo
que sei muito desta menina, e sei. e vou deitá-la outra vez.

Vasco Graça Moura
in 'O Concerto Campestre'

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Assim falou e sentiu o Poeta.

E oxalá todas as crianças tenham uma cama para dormir, aconchegadas com cantigas de embalar por pais amorosos. Oxalá nenhuma criança seja exposta a intempéries, a naufrágios, numa fuga inglória para o desconhecido. Que fadas benfazejas lhes guarde a inocência, que vivam a infância sem terem de passar por situações de maus-tratos e violência.

Oxalá! 

Meus amigos,

Daqui vos envio um grande abraço. 

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Poema:Citador
Imagens:Pixabay