Do fundo do corredor chegou
outra maca, empurrada por dois bombeiros. Atrás dela, uma mulher ainda jovem
chorava num aflitivo silêncio. A esposa do homem desviou-se ligeiramente do local
onde se encontrava para deixar passar a maca.
— É uma criança — disse ao
marido quando regressou ao lugar.
— E isto não anda nem desanda
— respondeu-lhe o homem.
— Sossega, por favor.
— Olha-me as horas que são!
A mulher fez um sorriso
triste.
— As horas são uma invenção
dos homens.
— E o deixa-andar é a desculpa
dos tolos.
Calou-se, arrependido do que
dissera. Observou a criança, serenamente acomodada na maca desproporcional ao
seu tamanho, e pensou que nunca puderam ter filhos. «Se os tivéssemos, tudo era
diferente. Mas agora não vale a pena pensar nisso. Podia era ter trazido um
jornal...»
O doente que estava sentado na
ponta do banco, ao pé do homem, levantou-se e perguntou:
— Onde será a casa de banho?
— Ao fundo do corredor, à
direita — responderam.
O homem sentou-se no lugar
deixado vago. Era gordo, e quase não cabia no espaço. Nessa altura, a porta de
um dos gabinetes abriu-se e a voz da enfermeira chamou alto:
— Alexandre José.
Quando o doente que acabara de
ser chamado se levantou, levando nas mãos a ficha amarela, o homem aproveitou o
espaço e, deixando de sentir resistência da senhora que estava a seu lado,
puxou a esposa por um braço e obrigou-a a sentar-se. Falou-lhe de passagem na
mulher doente que estava na sala de nebulizações, mas nada lhe disse sobre o
pedido que esta lhe fizera.
Uma das portas do corredor,
que não aquela por onde já haviam entrado três doentes, abriu-se e os bombeiros
empurraram a maca que tinha chegado há pouco, com a criança. Doentes de outras
macas que já ali se encontravam quando chegaram, mantinham-se estranhamente
calados.
— Nunca mais chega a nossa vez — voltou a resmungar o homem.
— Nunca mais chega a nossa vez — voltou a resmungar o homem.
— Tem calma — disse-lhe a
esposa. — Há pessoas mais necessitadas de assistência do que eu.
— Estamos aqui a sofrer e isto
não anda. Um pobre muito sofre!
— Aqui somos todos pobres.
— Parece-te, mas não somos.
Alguns têm mais sorte.
— Todos pobres — repetiu a
mulher. — Os ricos não vêm aqui e, mesmo que viessem, sem saúde, eram iguais a
nós. Quem está doente é pobre.
— Os que já entraram são
ricos...
O rosto da mulher apresentava agora um estranho cansaço, estava pálido e baço.
— Estou doente e muito
cansada. E essa tua insatisfação ainda me está a pôr pior. Vê se te calas!
"Trapos" - Conto de José Abílio Coelho
Continua...
=====
Meus amigos
Surgiram-me alguns compromissos inadiáveis que me fizeram abrandar a leitura, aqui, deste Conto.
Desde o início que a figura da mulher me chamou a atenção. Sempre pronta a desculpar os outros, procurando compreender a situação, esquecendo-se até de si própria. Até parece que parte dos seus males advém da maneira de ser do marido.
Ela faz-me lembrar alguém que eu conheço e por isso mesmo questiono-me: Tratar-se-á de uma bondade intrínseca que põe acima dos seus interesses os dos outros? Será receio de encarar os problemas de frente? Ou uma maneira de contrabalançar, quase inconscientemente, a verborreia do marido, adoptando uma atitude cordata e apagada?
Ciente de que na vida tudo tem de ser bem doseado, reconheço também a nossa complexidade como seres humanos.
Aguardando as vossas palavras, desejo a todos uma óptima sexta-feira.
Abraço.
:)
====
Imagem: daqui
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Meus amigos
Surgiram-me alguns compromissos inadiáveis que me fizeram abrandar a leitura, aqui, deste Conto.
Desde o início que a figura da mulher me chamou a atenção. Sempre pronta a desculpar os outros, procurando compreender a situação, esquecendo-se até de si própria. Até parece que parte dos seus males advém da maneira de ser do marido.
Ela faz-me lembrar alguém que eu conheço e por isso mesmo questiono-me: Tratar-se-á de uma bondade intrínseca que põe acima dos seus interesses os dos outros? Será receio de encarar os problemas de frente? Ou uma maneira de contrabalançar, quase inconscientemente, a verborreia do marido, adoptando uma atitude cordata e apagada?
Ciente de que na vida tudo tem de ser bem doseado, reconheço também a nossa complexidade como seres humanos.
Aguardando as vossas palavras, desejo a todos uma óptima sexta-feira.
Abraço.
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Imagem: daqui
Pertinentes as suas perguntas sobre a figura da mulher. O marido, de facto, é uma pessoa complicada, deve custar a aturar também em casa. Mas eu confesso que desconfio um pouco de pessoas que dão a impressão de serem boas ao ponto de se esquecerem de si próprias. Pode ser esse medo de encarar os problemas, de que a Olinda fala. Também pode ser uma maneira de compensar a impaciência e o egoísmo do marido. Mas também pode ser uma necessidade enorme de ser amada, ou obter reconhecimento por parte dos outros.
ResponderEliminarBondade intrínseca? Custa-me responder a esta pergunta. Eu penso que todos temos bondade intrínseca, só que, nalgumas pessoas, ela foi aniquilada, dando azo a que se desenvolvesse a maldade intrínseca (como no marido dela). Se todos nascemos com iguais doses de bondade e maldade intrínsecas é algo a que penso ainda ninguém conseguiu responder.
Excelente conto, boas personagens! Parabéns ao autor! Continuo a seguir ;)
.
ResponderEliminar~ Caracteres muito bem descritos, foram concebidos antagónicos, de uma forte oposição.
~ Estes extremos tão sublinhados, necessariamente, desempenham papel fulcral no conto.
~ ~ Continuo a apreciar e a aguardar... ~ ~
Abraço amigo, com votos de agradável fim de semana.
~ ~ ~
Olinda, achei curiosa sua questão acerca da psicologia da mulher de seu conto por causa de sua atitude de docilidade e compreensão com a dor do outro. Acredito sim, que haja "bondade intrínseca" - porque há pessoas verdadeiramente boas que procuram, acima de tudo, ser justas nas atitudes com o outro. São pessoas muito sensíveis e com um nível elevado de autocrítica e sua atitude com o outro não é de desculpabilização mas de justificação, em que tenta, por análise da situação e da pessoa em causa, encontrar uma explicação para a atitude mostrada em determinado momento. E como pessoas sensíveis que são, sofrem quando, por sua vez, não são compreendidas.
ResponderEliminarEsta é a minha visão baseada na experiência - feliz - com esse "tipo raro" de pessoas ;)
Note-se que, nada disto tem, de longe, qualquer ligação com um outro tipo de pessoas - não raro - os falsos anjos. As que "perdoam" tudo, calam tudo... para ficar bem na fotografia.
bjn amg
Na leitura que acabo de fazer, vejo um problema muito actual.......
ResponderEliminarum problema aliás..., de todos os dias....(.Lamentavel)
Beijo
bfs
Estive a ler os «Trapos» - anteriores e este - e gostei muito da construção modelada das personagens.
ResponderEliminarVou estar atenta.
(Anda difícil a vida escolar.)
Beijinho meu, querida Olinda.
Comecei lá na primeira parte. Um drama que é muito atual, e uma situação que não muda nunca. As espera nos hospitais e a impaciência mas culina que chega a ser mais aflitiva do que a própria doença.
ResponderEliminarUm abraço e bom fim de semana
Talvez seja uma miscelânea de tudo isso, uma resignação, uma passividade tão própria dos er português.
ResponderEliminarMinha querida, um abraço e bom fim de semana
Querida amiga
ResponderEliminarUm texto inquietador,
pelas dúvidas
e respostas contidas
em sua mensagem escrita
ou nas mensagens contidas
nas entrelinhas imaginadas.
______________________________
“Um sonho é uma parte de nós
onde está guardada a semente da esperança.
Cuidar desta semente é a minha,
a sua, a nossa missão na vida.”
Aluísio Cavalcante Jr.
Um Conto com vida (real) dentro. Generosidade e prepotência contrastam na execução do acto da caridade.
ResponderEliminarEntristece-me "sentir" que os Seres sejam egoístas, mesmo no paralelismo dos acontecimentos.
Beijos
SOL
Tudo me parece mais real que a ficção
ResponderEliminarBj
(^‿^)✿
ResponderEliminarBonjour chère Olinda !
Oh ! C'est un beau texte que tu offres ! MERCI pour ce superbe partage.
GROSSES BISES d'Asie jusqu'à toi !
Bonne continuation !!!!
As esperas nos hospitais desesperam qualquer um, mas os homens são bem mais impacientes e infelizmente já observei isso das várias vezes que tive de estar com familiares nas urgências.
ResponderEliminarBoa semana
Beijinhos
Maria
Gostei do que li. Momentos de dor espalhados pelas salas de espera dos hospitais.
ResponderEliminarOs olhos vagueiam nos que chegam e nos que são chamados.
A dor e o desespero da espera desdobram-se em angústias sem afectos...
A tudo isso se junta a impaciência de muitos e a incapacidade de respostas dos que do lado de dentro vão organizando milagres de coragem e de persistência.
Um drama bem real. Essa espera nas salas de consulta dos hospitais deixam as pessoas impacientes e a passividade da doente talvez seja apenas uma maneira de acalmar o marido aflito
ResponderEliminarQuerida Olinda, obrigada pelo carinhos e pelos votos de melhora
Um dia lindo e abençoado
Beijos no coração
O conto, representa não só o ambiente diário das urgências hospitalares, mas também alguns dos aspectos característicos da nossa sociedade, como a resignação, etc.
ResponderEliminarGostei, é um magnífico conto.
Tem uma boa semana, querida amiga Olinda.
Beijo.
Revejo um (bom) bocado nessa mulher!
ResponderEliminarBeijinhos, bom dia :)