A porta de um gabinete
abriu-se e, ainda antes de o doente que tinha sido chamado vinte minutos antes
sair para o corredor, escutou-se a voz metálica da enfermeira:
— António Mariano.
Um homem que estava sentado no
outro extremo do banco levantou-se e, lenta e silenciosamente, começou a dirigir-se
para a porta aberta, com a ficha amarela presa entre os dedos de uma das mãos.
O seu lugar ficou vazio no banco comprido.
— Senta-te agora — disse o
homem, virando-se para a esposa.
— Senta-te tu, que estás a
morrer.
O homem ia responder-lhe mal
quando, uns bons metros à sua direita, uma porta se abriu. Era a última sala do
lado nascente do corredor. Uma enfermeira, visivelmente arreliada, saiu,
deixando a porta escancarada. Sem grande interesse, o homem soletrou a palavra
que estava inscrita numa placa de metal afixada a meio da porta: «Nebulizações...»
A curiosidade levou-o a
inclinar-se um pouco sobre a sua direita, de modo a poder observar o que se
passava dentro da sala. Como o não conseguisse, desencostou-se, colocou ambas
as mãos atrás das costas, tentando disfarçar a curiosidade, e deu uns passos,
junto à parede, para o lado da porta escancarada. Lá dentro, ao fundo, havia
uma fila de cadeiras pretas. Só uma estava ocupada por uma senhora de muita
idade, magra, os cabelos completamente brancos contrastando com a cor preta das
roupas que vestia. Tinha as pernas esticadas, as mãos esquálidas poisadas sobre
os joelhos, com as palmas abertas voltadas para cima. A parte de trás da cabeça
estava apoiada na parede. Uma pequena máscara de plástico transparente
ajustava-se-lhe sobre a boca e o nariz, e o seu peito arfava em movimentos de
grande desespero.
Quando o homem entrou no seu
campo de visão, desencostou levemente a cabeça e falou-lhe qualquer coisa sem
retirar a máscara. Os seus olhos eram dois pontos de lume e a sua voz um
sussurro. O homem não entendeu o que a mulher lhe dissera e disfarçou, como se
não fosse nada consigo. A mulher continuou a falar e a fazer gestos curtos e
lentos com as mãos magras e muito pálidas.
A situação incomodava-o.
Pensou em bater à porta por onde vira entrar a enfermeira, chamá-la para acudir
ao desespero daquela alma, reclamar contra tudo e contra todos, mas
reconsiderou: «Não é nada comigo».
Tentou virar as costas à
porta, voltar ao seu lugar ao pé do banco, mas algo o impedia de fazê-lo. Os
olhos da mulher, muito redondos e abertos, faiscavam numa súplica.
— Quer alguma coisa? —
perguntou, dando um passo em direcção à porta e colocando apenas a cabeça do
lado de dentro.
Num gesto débil, a mulher
levou uma mão ao rosto e desviou ligeiramente a máscara.
— Que me telefonasse ao meu
marido... que não sabe que estou aqui.
A sua voz saía a custo,
entrecortada pelos movimentos forçados do peito num vaivém aflito. Voltou a
colocar a máscara no seu lugar e, com os mesmos gestos lentos, retirou de um
dos bolsos uma pequena agenda. Não conseguia falar. Tinha a máscara colocada
sobre o nariz e a boca, os olhos toldados pelo desespero, uma mão de novo
colocada sobre o joelho, com a palma virada para cima, enquanto a outra,
trémula e magra, lhe apontava o pequeno bloco.
— O número está aqui.
— O número está aqui.
— Não sei o que quer — mentiu
o homem virando-lhe apressadamente as costas para se dirigir ao antigo lugar,
entre o banco e a porta do gabinete médico. Sentia-se mal por nada fazer, mas
pensou que talvez fosse melhor assim. Voltou a arrepender-se de não ter trazido
um jornal, e depois perdeu-se a pensar no gato Manchinha que lhes
tinha morrido quatro dias antes.
«Boa companhia», pensou. «Mas
havemos de arranjar outro... Nem sei. Sempre escutei dizer que gatos ao pé de
doentes não é bom... para mais, na nossa idade, o que queremos é quem olhe por
nós».
Lembrou-se sem arrependimento de quantas ninhadas de gatos afogara quando era pequeno, e voltou a pensar em Manchinha e na companhia que lhes fizera durante mais de onze anos.
Lembrou-se sem arrependimento de quantas ninhadas de gatos afogara quando era pequeno, e voltou a pensar em Manchinha e na companhia que lhes fizera durante mais de onze anos.
"Trapos" - Conto de José Abílio Coelho
Continua...
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E que dizer quando nós próprios nos demitimos da nossa prerrogativa de ser solidários? O autor coloca a personagem perante a oportunidade de, num pequeno gesto, poder fazer a diferença. Mas vê-se que o egoísmo e o desinteresse são mais fortes. E perde-se em pequenos nadas, com a agravante de se sentir confortável com actos cruéis praticados na infância.
Num pequeno espaço, num tempo de espera alargado, com muita gente, sob pressão, de que comportamentos seremos nós capazes?
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Imagem:daqui
É verdade que, sob pressão, podemos ser capazes de atos que nem imaginamos. Com uma arma apontada à cabeça, qualquer um de nós se pode transformar num assassino. Pergunto-me se o homem sentia essa arma apontada à cabeça, quando afogou as ninhadas de gatos, na infância. Os adultos à volta de uma criança podem exercer uma pressão terrível sobre ela. O facto de ele lembrar o acontecido sem arrependimento, pode indicar um estratagema de defesa do cérebro. E poderia explicar porque optou em não ajudar a mulher aflita. Enfim, são situações que geram explicações psicológicas interessantes...
ResponderEliminar[-ิ‿•ิ]❀
ResponderEliminar。♫° ·. 。♫° ·.merci Olinda pour ce partage !
Bises d'Asie et bon début de semaine !!!! ✿⊱·.✿✿ミ
Todos temos, mais ou menos visíveis, "Manchinhas" para desculpar a negação de solidariedade. Na verdade existe muita falta de Amor irmão.
ResponderEliminarTexto que dá um bom mote para uma Reflexão aturada e bem profunda.
Obrigado por havê-lo Postado.
Beijos
SOL
Muito bom o seu blog, estive a percorre-lo li alguma coisa, porque espero voltar mais algumas vezes,
ResponderEliminardeu para perceber a sua dedicação em partilhar o seu saber.
Se me der a honra de visitar e ler algumas coisas no Peregrino e servo ficarei radiante.
E se gostar e desejar comente.
Que Deus vos abençõe e guarde.
António.
http://peregrinoeservoantoniobatalha.blogspot.pt/
vamos conhecendo ao autor,
ResponderEliminarretalho a retalho
obrigada, Olinda!
Oi Olinda!
ResponderEliminarBoa noite!
Um texto que nos faz refletir sobre a falta de solidariedade e amor nos dias de hoje. Ele poderia ter auxiliado aquela mulher que estava tão angustiada naquele instante. Não custava gastar um pouco de seus preciosos minutos, visto que preferiu ficar pensando em atos cometidos quando criança, ou arrepender-se de não ter trazido um jornal. São esses pequenos gestos que faz a diferença na nossa caminhada.
Um beijo Olinda!
Ótima semana!
Não os perdoeis senhor
ResponderEliminarporque eles sabem o que fazem
Li com muita atenção estes teus "trapos " e desde já te agradeço pela publicação. Não sei o que se passa pela nossa cabeça quando temos atitudes destas. Muitas vezes é o medo que nos impede de agir, outras é aquela mania de que o assunto não nos diz respeito, Para mim seria muito dificil ficar quieta e calada numa situação dessas, embora tenha consciência que por vezes arranjo confusão por ser tão impulsiva. Nunca me arrependi , pois se agi de determinada forma foi porque o coração assim mandou. Nestes casos, passados nos hoospitais as pessoas ficam aind com mais medo, não só or estarem mais fragilizadas, mas também por recearem mau atendimento quando chegar a vez delas, Mas, Olinda, infelizmente essa falta de solidariedade ve-se em qualquer lugar. Ma vez estava nos correios estava a ficar descontrolada, porque uma senhora velhinha estava sentada à espera da vez e não houve uma pessoa que fosse capaz de a deixar ir na frente. Não o fiz porque eu tinha ainda muito que esperar, mas o que eu deveria ter feito era ter ido falar com as pessoas da frente para a deixarem ir, Aliás essa senhora se tivesse ido ao balcão com certeza seria atendida, mas sentou-se e ficou atenta para saber quando teria de se levantar, até hoje não esqueci o caso por saber que não fiz o certo; deveria ter acompanhado a idosa ao começo da fila e ter pedido para que a atendessem primeiro. E assim, amiga.......temos muito a aprender, um beijinho e até breve. Vou ver se não demoro tanto. Adorei a tua visita neste dia tão cinzento...
ResponderEliminarEmilia
É verdade! Mas eu li uma vez uma frase num livro, naquela folha antes de iniciar o romance, em que alguém recomendava: "nunca deixes formar em ti uma consciência, porque, quando ela se forma, nunca mais te larga."
ResponderEliminarBeijinhos :)
~
ResponderEliminar~ ~ Parece impossível tanta frieza!
~ ~ Continuo a gostar. ~ ~
~ ~ ~ Beijos amigos.~ ~ ~
~ ~
Bela partilha
ResponderEliminar[-ิ‿•ิ]❀
ResponderEliminarUn petit bonjour chez toi chère Olinda !!!!
GROS BISOUS d'Asie vers le Portugal et bonne journée !
Olá Olinda
ResponderEliminarA frieza com que ignorou o pedido deixou-me estarrecida.
É triste ver a falta de compaixão do ser humano.
Encerra-se na sua ignorância incapaz de solidarizar-se com seu semelhante
Beijinhos com carinho, querida!
Estou a pensar cá para comigo: eu não teria um comportamento desses. Acredito no amor ao próximo, ao desconhecido, em fazer o bem sem olhar a quem. Mas, sei lá... Às vezes a covardia e o conforto de nada fazer, de ignorar, de calar a consciência com pequenos nadas, são mais fortes que nós.
ResponderEliminarJá agora: adorei aquela frase da Gata. É isso mesmo.
Beijinhos
Isabel Gomes
هჱ⊱
ResponderEliminarOlá!
Passei para te visitar.
Primeiro li a 3ª parte de Trapos e fiquei curiosa para saber como começava a história. Voltei para a 1ª e 2ª parte... como isso acontece em todo lugar!...
Como as pessoas tem má-vontade ou medo (acho que é mais medo das consequências) de ajudar a quem está muito doente ou perto da morte.
Esse conto é forte e retrata a realidade em quase todos os lugares que conheço.
Isso é contra a dignidade do ser humano.... deveríamos pelo menos tentar!...
Ótima quarta-feira!
Beijinhos do Brasil.
ه°·✿✿
Li atentamente seu texto infelizmente isso estou vendo aqui na vida real,
ResponderEliminarconfesso a você é tanta maldade .
Sem dizer que infelizmente existe requinte de maldade e crueldade por toda parte.
Sendo que o mundo precisa só de amor para tudo mudar.
Abraços aceite meu carinho.
Evanir.
Belo "retrato" da realidade...Espectacular....
ResponderEliminarCumprimentos
Conitnuo a seguir esta maravilhosa história.
ResponderEliminarBj.
Irene Alves