quarta-feira, 2 de março de 2011

SEM ALVORADA



António Gedeão (Rómulo de Carvalho), de uma forma magistral, soube imprimir ritmo e sentimento a este poema, portador de uma verdade imensa, e que será a história de tantas mulheres, de tantas Luísas que há por aí e por esse mundo fora.Perguntar-se-á: então, e os direitos conquistados e a emancipação e...?


                                      Calçada de Carriche

                                         Luísa sobe,
                                         sobe a calçada,
                                         sobe e não pode
                                         que vai cansada.
                                         Sobe, Luísa,
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe
                                         sobe a calçada.

                                         Saiu de casa
                                         de madrugada;
                                         regressa a casa
                                         é já noite fechada.
                                         Na mão grosseira,
                                         de pele queimada,
                                         leva a lancheira
                                         desengonçada.
                                         Anda, Luísa,
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.

                                         Luísa é nova,
                                         desenxovalhada,
                                         tem perna gorda,
                                         bem torneada.
                                         Ferve-lhe o sangue
                                         de afogueada;
                                         saltam-lhe os peitos
                                         na caminhada.
                                         Anda, Luísa.
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.

                                         Passam magalas,
                                         rapaziada,
                                         palpam-lhe as coxas
                                         não dá por nada.
                                         Anda, Luísa,
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.

                                         Chegou a casa
                                         não disse nada.
                                         Pegou na filha,
                                         deu-lhe a mamada;
                                         bebeu a sopa
                                         numa golada;
                                         lavou a loiça,
                                         varreu a escada;
                                         deu jeito à casa
                                         desarranjada;
                                         coseu a roupa
                                         já remendada;
                                         despiu-se à pressa,
                                         desinteressada;
                                         caiu na cama
                                         de uma assentada;
                                         chegou o homem,
                                         viu-a deitada;
                                         serviu-se dela,
                                         não deu por nada.
                                         Anda, Luísa.
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.
                                         Na manhã débil,
                                         sem alvorada,
                                         salta da cama,
                                         desembestada;
                                         puxa da filha,
                                         dá-lhe a mamada;
                                         veste-se à pressa,
                                         desengonçada;
                                         anda, ciranda,
                                         desaustinada;
                                         range o soalho
                                         a cada passada,
                                         salta para a rua,
                                         corre açodada,
                                         galga o passeio,
                                         desce o passeio,
                                         desce a calçada,
                                         chega à oficina
                                         à hora marcada,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga;
                                         toca a sineta
                                         na hora aprazada,
                                         corre à cantina,
                                         volta à toada,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga,
                                         puxa que puxa,
                                         larga que larga.
                                         Regressa a casa
                                         é já noite fechada.
                                         Luísa arqueja
                                         pela calçada.
                                         Anda, Luísa,
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.
                                         Anda, Luísa,
                                         Luísa, sobe,
                                         sobe que sobe,
                                         sobe a calçada.

                                     
António Gedeão, Poesias Completas (1956-1967)

4 comentários:

  1. Excelente escolha! Sempre gostei muito deste poema.
    Recordo-me que a primeira vez que tomei contacto com o mesmo, foi através da minha mãe, que, num dia da minha adolescência, o declamou para mim. Ah, Mamã! Como tenho saudades desse tempo em que tu eras nova!
    No meu blog deixei uma resposta ao seu comentário.
    Um abraço com muita amizade.

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  2. Sempre gostei muito deste poema...

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  3. Olá, Isabel

    Há quem dia que não há coincidências mas que as há, há!A minha mãe lia em voz alta e eu também de vez em quando o faço.Guardei a lembrança dos livros e escritores que ela lia, tanto que depois os li todos.Um deles, é Júlio Dinis e a sua "Morgadinha dos Canaviais".
    Grande abraço
    Olinda

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  4. Olá, Fá

    Este poema de António Gedeão é daqueles de que nunca nos cansamos.De cada vez que o lemos parece trazer coisas novas.
    Abraço

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