António Gedeão (Rómulo de Carvalho), de uma forma magistral, soube imprimir ritmo e sentimento a este poema, portador de uma verdade imensa, e que será a história de tantas mulheres, de tantas Luísas que há por aí e por esse mundo fora.Perguntar-se-á: então, e os direitos conquistados e a emancipação e...?
Calçada de Carriche
Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe sobe a calçada. Saiu de casa de madrugada; regressa a casa é já noite fechada. Na mão grosseira, de pele queimada, leva a lancheira desengonçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Luísa é nova, desenxovalhada, tem perna gorda, bem torneada. Ferve-lhe o sangue de afogueada; saltam-lhe os peitos na caminhada. Anda, Luísa. Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Passam magalas, rapaziada, palpam-lhe as coxas não dá por nada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Chegou a casa não disse nada. Pegou na filha, deu-lhe a mamada; bebeu a sopa numa golada; lavou a loiça, varreu a escada; deu jeito à casa desarranjada; coseu a roupa já remendada; despiu-se à pressa, desinteressada; caiu na cama de uma assentada; chegou o homem, viu-a deitada; serviu-se dela, não deu por nada. Anda, Luísa. Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Na manhã débil, sem alvorada, salta da cama, desembestada; puxa da filha, dá-lhe a mamada; veste-se à pressa, desengonçada; anda, ciranda, desaustinada; range o soalho a cada passada, salta para a rua, corre açodada, galga o passeio, desce o passeio, desce a calçada, chega à oficina à hora marcada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga; toca a sineta na hora aprazada, corre à cantina, volta à toada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga. Regressa a casa é já noite fechada. Luísa arqueja pela calçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada. Anda, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
António Gedeão, Poesias Completas (1956-1967)
Excelente escolha! Sempre gostei muito deste poema.
ResponderEliminarRecordo-me que a primeira vez que tomei contacto com o mesmo, foi através da minha mãe, que, num dia da minha adolescência, o declamou para mim. Ah, Mamã! Como tenho saudades desse tempo em que tu eras nova!
No meu blog deixei uma resposta ao seu comentário.
Um abraço com muita amizade.
Sempre gostei muito deste poema...
ResponderEliminarOlá, Isabel
ResponderEliminarHá quem dia que não há coincidências mas que as há, há!A minha mãe lia em voz alta e eu também de vez em quando o faço.Guardei a lembrança dos livros e escritores que ela lia, tanto que depois os li todos.Um deles, é Júlio Dinis e a sua "Morgadinha dos Canaviais".
Grande abraço
Olinda
Olá, Fá
ResponderEliminarEste poema de António Gedeão é daqueles de que nunca nos cansamos.De cada vez que o lemos parece trazer coisas novas.
Abraço