Irene Lisboa (1892 - 1958) não viveu nem escreveu à margem do regime político vigente em Portugal. Tendo começado a publicar em volume, para o público adulto, em 1936 (Um dia e outro dia…, poesia, sob o pseudónimo João Falco) e no ano seguinte, além de nova obra poética, o ensaio de carácter pedagógico, Froebel e Montessori (sob o pseudónimo Manuel Soares), não foi ignorada pela vigilância do Estado Novo.
Investigam-se as formas de controlo e repressão de que foi vítima Irene Lisboa, fazendo dela um caso exemplar de subtil silenciamento e cercear de liberdades. Apesar de nunca ter desistido da sua escrita nem da sua actividade intelectual e cívica, o isolamento, a impossibilidade de ensinar e a escassez material com que se debateu até ao final da vida, vendo-lhe sempre negados quaisquer apoios, foram o preço a pagar pela independência do seu pensamento e da sua escrita e pela não-conformidade às funções e atitudes que o salazarismo exigia ao género feminino.
Assim começa o estudo dedicado a Irene do Céu Vieira Lisboa, escritora, pedagoga, professora, portuguesa. Nele tomamos contacto com o seu baptismo de fogo quando cria o jornal Educação Feminina (1913), altura em que inicia a sua intervenção cívica, literária e pedagógica e em que começam os confrontos da jovem escritora com os poderes instituídos. Veja mais aqui.
Entretanto, leiamos um dos seus poemas. À forma como os escrevia, introduzindo por vezes, frases longas, a própria diz:
"Ao que vos parecer verso chamai verso e ao resto chamai prosa"
Jeito de Escrever
Não sei que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.
Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei que diga, não sei que pense.
Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!
Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago...
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas.
Mortas!
E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!
Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados,
solta a outra, de pena expectante.
Uma que agarra, a outra que espera...
Ó ilusão!
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?
Silêncio.
Nem pássaros já, noite morta.
Me cerro.
Ó minha derradeira composição! Do não, do nem, do nada, da ausência e
solidão.
Da indiferença.
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.
Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou.
in 'Antologia Poética'
A obra de Irene Lisboa é extensa, dividindo-se pela poesia, pelo conto, pela crónica e pela novela. Usou pseudónimos masculinos em algumas das suas publicações, como se refere acima: "João Falco" e "Manuel Soares". Era comum as mulheres usarem esse estratagema para que os seus escritos fossem aceites.
De referir, por exemplo, de entre outras, George Eliot, de seu nome Mary Ann Evans, romancista britânica (1819-1880).
Muito caminho percorrido e a percorrer para que a Mulher encontre o seu lugar no Mundo e nas sociedades a que pertence.
====
Irene Lisboa, por
Carta de José Régio a Irene Lisboa - aqui
Imagem: aqui
Poema: Citador
Conheço o seu percurso de lutadora mas conheço mal a sua obra.
ResponderEliminarAbraço
Não conheço os trabalhos dela mas acredito que tenha sido uma exemplar escritora.
ResponderEliminarFeliz fim de semana
Otra mujer más cuyos valores intelectuales fueron silenciados no porque fueran peligrosas sus ideas sino porque lo que se quería evitar era que otras mujeres desarrollaron sus capacidades. Si las mujeres pueden realizar trabajos técnicos o ocupar puestos de responsabilidad social, es lógico que no estén dispuestas a someterse y esa libertad aterraba a los hombres. El hombre pierde un poder. Todo esto está claro en la mayoría de los paises del mundo occidental. Las mujeres no buscamos el poder sino nuestra libertad. Nuestra familia sigue siendo importante y hasta lo más importante..
ResponderEliminarComo mulher, não lhe eram concedidos créditos pela escrita. Como tantas outras, teve que se valer de pseudônimos masculinos. Criar um jornal, em 1913, e chamado Educação Feminina", já mostra o quanto foi corajosa, dentro de um regime repressivo e autoritário. Do belo poema que nos trouxe flui o espírito contestador e desolado da autora. Grande abraço.
ResponderEliminarNão conhecia nada dela.Gostei da poesia e de ler! beijos, ótimo fim de semana! chica
ResponderEliminarNo conocía de su existencia ni de su obra. Me temo que por aquí no haya traducciones. Pero indagaré. Obrigado por la información.
ResponderEliminarDa personagem Irene Lisboa, tenho algum conhecimento; da sua Obra, pouco sei. Terei de pesquisar porque é notório o valor do seu Pensamento.
ResponderEliminarA Dignidade da Mulher é um Dever e um Direito embora nem sempre tenha sido assim.
Amei perceber este Poema.
"[...] Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou."
Muito grato, Olinda, por partilhares o teu conhecimento.
Beijo
SOL da Esteva
Olá, linda *
ResponderEliminarConheço alguma da obra da Irene Lisboa.
Tenho cá em casa o 1 livro que li dela " Voltar Atrás para Quê".
Gostei muito, assim como estes belos versos " Jeito de Escrever"
Uma grande mulher, que como muitas outras nunca foi dada a conhecer, no seu valor e garra.
Excelente e merecida publicação.
Abraço e brisas doces ****
Belíssimo poema de uma escrita que não conhecia.
ResponderEliminarObrigado pela partilha
Bom fim de semana
Beijinhos
Boa noite de sábado, querida amiga Olinda!
ResponderEliminarAmei o post.
O desafiar, com embasamento, é uma reação necessária.
Lendo o poema, sem estrutura formal, dou valor à poetisa que enfrentou desafios e preconceito.
Imagine ter que se passar por homem para ser aceita...
Pelos tempos, as mulheres cantam o "acordar"... É preciso, ainda há muitos seres acomodados. Dormem em berço esplêndido, na certa.
Gostei muito da mensagem que nos trouxe.
Tenha dias abençoados!
Domingo de paz e bem lhe desejo, querida.
Beijinhos com carinho de gratidão e estima
😘🕊️💙
Olá, querida Olinda, que coisa triste esse preconceito, valer-se de pseudônimos masculinos e também sentir-se cerceada, limitada em dizer o que sentia, o que pensava... a mulher teve de lutar muito,(ainda precisa) para ser o que é e o que pensa. Gostei muito de ler essa história de Irene Lisboa que não a conhecia. E a mulher continua, ainda, em muitos países, a ter de matar um leão por dia para provar do que é capaz.
ResponderEliminarTe aplaudo, querida amiga!
Um bom domingo e uma ótima semana!
Beijinho.
No la conocía, pero me gusto muchos sus versos. Te mando un beso.
ResponderEliminarOlá querida Olinda
ResponderEliminarComo é ignóbil uma escritora com tamanho potencial literário ter que recorrer a subterfúgios para expor a sua arte. Trilhar tortuosos caminhos em virtude do preconceito de uma sociedade machista.
Mas apesar de tantas dificuldades soube sobrepor-se e nos brindar com esses versos tão singulares e belos
Uma linda nova semana
Beijinhos
O salazarismo fez muitas vítimas.
ResponderEliminarIrene Lisboa foi uma de entre muitas outras. Mas estou em crer que ela ganhou força para escrever com a perseguição de que foi alvo.
Uma homenagem muito merecida, a que aqui presta à escritora.
Boa semana, amiga Olinda.
Beijos.
Não era fácil ser escritora quando a Irene Lisboa desafiou todas as "ordens estabelecidas". É muito bom que seja estudada. A obraque nos deixou merece-o. Gostei muito de ler aqui o poema "Jeito de escrever". "Ao acaso, sem âncora, vago no tempo. No tempo vago... Ele vago e eu sem amparo." Tantas vezes sinto o mesmo...
ResponderEliminarTudo de bom para si, minha Amiga Olinda.
Uma boa semana.
Um beijo.
Não conhecia. Obrigada por partilhar.
ResponderEliminarIsabel Sá
Brilhos da Moda
Boa tarde Olinda,
ResponderEliminarTempo em que a liberdade era totalmente inexistente e em que Irene lisboa foi uma das personalidades vitima de tal situação.
Gostei imenso do poema e devo confessar que não conheço a sua obra, à qual vou procurar estar atenta.
Um beijinho e muito obrigada pela excelente partilha.
Ailime
Iniciativa valiosa a sua, Olinda, que é trazer a figura de Irene Lisboa para que a conheçamos ou a reencontremos na sua poesia e na sua rebeldia, uma das mais originais escritoras portuguesas do século XX. A poesia e conto foram a sua praia. Como Graça Pires , também aqui o poema Jeito de escrever e outros que ilustram, sobretudo, o texto de Sara Barbosa que nos apresenta um alentado estudo sobre Irene Lisboa.
ResponderEliminarUma boa semana, para ti, minha amiga!
Um abraço,
Olá, amiga Olinda, não conhecia a poeta Irene Lisboa, que você partilha conosco nesta postagem.
ResponderEliminarGostei muito do poema, de grande beleza, que diz bem do talento da poeta.
Foi muito bom conhecê-la e ler um de seus poemas, graças a você.
Uma ótima semana.
Um beijo.
Boa tarde, Olinda!
ResponderEliminarMuito bacana nos apresentar Irene Lisboa. Conheço pouquíssimo de sua obra, mas sei que ela foi um ícone da literatura portuguesa do século passado. Obrigada por essa iniciativa.
Um beijo.
Boa tarde, amiga Olinda!
ResponderEliminarBacana sua ideia de nos apresentar a escritora Irene Lisboa. Conheço pouquísimo de sua obra, mas sei que ela foi um ícone da literatura portuguesa do século passado.
Obrigada pelo poema que você nos presenteou nessa postagem
Um abraço
Conheço pouco da obra de Irene Lisboa que tem sido pouco divulgada, por isso, congratulo-me com este estudo que divulga o seu valor como inovadora no ensino e na escrita.
ResponderEliminarOlinda, desculpe a minha ausência, tenho estado com problemas de saúde.
Tudo do melhor para si. Beijinhos.
~~~~~~~~~
Gostei muito de conhecer esta escritora com tanta versatilidade na escrita. Inovações me atraem e aprecio a ousadia que as mulheres possuem para sair da invisibilidade. Grata pela partilha do poema. Boa tarde. bjsss
ResponderEliminarO que dizer?... Mais uma publicação, com o sabor a pura descoberta, para mim... Grata por divulgar estas maravilhas, e alargar-me um pouco mais os meus, ainda estreitos, horizontes literários...
ResponderEliminarUm beijinho
Ana