sábado, 9 de fevereiro de 2019

Escuta, amor

Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos árvores velhas, os ramos a crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as árvores, a terra faz todo o sentido. De certeza que as árvores acreditam que são feitas de terra. 

Por isto e por mais do que isto, tu estás aí e eu, aqui, também estou aí. Existimos no mesmo sítio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se. Os nossos corpos só podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham para os nossos corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos nos reflectem. Tu és aquilo que sei sobre a ternura. Tu és tudo aquilo que sei. Mesmo quando não estavas lá, mesmo quando eu não estava lá, aprendíamos o suficiente para o instante em que nos encontrámos.




Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti, existe também à nossa volta quando estamos juntos. E agora estamos sempre juntos. O meu rosto e o teu rosto, fotografados imperfeitamente, são moldados pelas noites metafóricas e pelas manhãs metafóricas. Talvez outras pessoas chamem entendimento a essa certeza, mas eu e tu não sabemos se existem outras pessoas no mundo. Eu e tu declarámos o fim de todas as fronteiras e inseparámo-nos. Agora, somos uma única rocha, uma única montanha, somos uma gota que cai eternamente do céu, somos um fruto, somos uma casa, um mundo completo. 


Existem guerras dentro do nosso corpo, existem séculos e dinastias, existe toda uma história que pode ser contada sob múltiplas perspectivas, analisada e narrada em volumes de bibliotecas infinitas. Existem expedições arqueológicas dentro do nosso corpo, procuram e encontram restos de civilizações antigas, pirâmides de faraós, cidades inteiras cobertas pela lava de vulcões extintos. Existem aviões que levantam voo e aterram nos aeroportos interiores do nosso corpo, populações que emigram, êxodos de multidões famintas. E existem momentos despercebidos, uma criança que nasce, um velho que morre. Dentro de nós, existe tudo aquilo que existe em simultâneo em todas as partes.

Questiono os gestos mais simples, escrever este texto, tentar dizer aquilo que foge às palavras e que, no entanto, precisa delas para existir com a forma de palavras. Mas eu questiono, pergunto-me, será que são necessárias as palavras? Eu sei que entendes o que não sei dizer. Repito: eu sei que entendes o que não sei dizer. Essa certeza é feita de vento. Eu e tu somos esse vento. Não apenas um pedaço do vento dentro do vento, somos o vento todo.
Escuta,
ouve.
Amor.
Amor.

José Luís Peixoto, 

in 'Abraço'


"Eu e tu declarámos o fim de todas as fronteiras e inseparámo-nos."
Inseparámo-nos surpreendeu-me um pouco mas estou pronta a derrubar todas as fronteiras.  



José Luís Peixoto (Galveias, Ponte de Sor, 4 de setembro de 1974) é um narrador, poeta e dramaturgo português, cuja primeira obra foi publicada em 2000. (...) foi o mais jovem vencedor de sempre do Prémio Literário José Saramago. Desde esse reconhecimento, a sua obra tem recebido amplo destaque nacional e internacional. Os seus livros estão traduzidos e publicados em 26 idiomas. O romance Galveias foi o primeiro livro de língua portuguesa a ser traduzido diretamente para o idioma georgiano, tendo acontecido o mesmo ao livro A Mãe que Chovia, que foi o primeiro a ser traduzido diretamente do português para o mongol. Aqui

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Texto - Citador
Imagem: daqui

6 comentários:

  1. Olá Olinda
    Que texto lindo e agradabilíssimo de ler
    O amor é enlace perfeito de dois corações
    Dias aprazíveis e felizes
    Beijos

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  2. um texto que traz todos os ingredientes para se gostar muito.
    não sou excepção e gosto muito...

    contudo, por mim, ficava nesta belíssima expressão "tu és aquilo que sei sobre a ternura..."

    abraço, amiga Olinda

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  3. Tão lindo!
    Tão lindo quando assim é!

    Beijinhos.

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  4. Um texto poético surpreendente, mormente original e eloquente.
    De facto é um sério tratado de amor.
    Um ar fresco na composição estética.
    Já anotei o nome e agradeço a divulgação.
    Beijinhos, Olinda.
    ~~~

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  5. Querida amiga Olinda, que bela escolha e partilha!
    Gosto da obra de José Luis Peixoto e este "ABRAÇO" devia ser lido por TODOS.
    Beijo.

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  6. Que texto lindo, Olinda, não conheço o autor. Eu gosto muito de quando um escritor/ poeta se inspira dessa forma, com o que há também ao seu redor e não somente com o de dentro, afinal, a natureza é tão linda e imensa que, na minha opinião, é a melhor das inspirações. Um abraço.

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